sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Naquele apartamento, numa vila da Tijuca

Lembranças afloram em cada canto naquele velho apartamento numa vila da Tijuca, hoje à espera de um inventário, uma arrumação e quem de novo o habite, mas que por quatro décadas pulsou de sons, alegrias, afetos. Por trás de sua porta, quantas coisas ainda guardadas e tragadas pelo tempo: cadernos da alfabetização, fotos amareladas, primeiros livros preferidos, memórias adormecidas...Acordo em mim cenas de encantamento em meio à fatigante rotina de meus pais e seus sete filhos – seis mulheres e o único homem ao meio, sendo eu a raspa do tacho.  
     Ecoaram ali as mais estridentes gargalhadas e gritos dessa família, famosa na ruela de paralelepípedos que, até os meus dez anos de idade, tinha parte do chão em terra. Era marcando nela com gravetos que desenhávamos amarelinhas para pular até o céu inventado. Sob o céu real, povoado por pombas pretas, cinzas e brancas e pipas multicoloridas - que meninos como meu irmão empinavam e cruzavam -, cresci pulando cordas, entre queimados, piques, passa anel, cinco marias e brincadeiras que faziam daquele tempo um voo. Com asas, eu ia à magia da vida.
     Do parapeito do 201 do bloco 6, onde minha mãe cultivava vasos de plantas como seu  jardim possível, crianças em algazarra e uma arborizada pedreira eram as melhores vistas da vila de janelas próximas umas às outras e cheia de fuscas, chevettes e nossa inesquecível variant (verde abacate, onde cabia toda a família, mas isso dá outra história...). Eram também meu quintal comunitário e minha floresta inalcançável – ambos, meu pequeno horizonte.  Quando estava de castigo, debruçava-me sobre os cotovelos no peitoril, mesmo hábito das vizinhas à cata de novidades. 
     Uma delas, senhora de seus 90 anos que morava no térreo abaixo de nossa casa e com quem mamãe proseava, colocava almofada sob os braços para assistir a vida da janela - sem mais calos. Lembro-me de seu rosto encarquilhado insinuando a antiga beleza, sob cabelos de algodão em coque, à luz de um meigo sorriso e cristalinos olhos azuis. Ao chegar da escola nos fins de tarde, sentia ternura e tristeza ao vê-la em sua calma espera por algumas palavras ou um afago nas mãos com manchas senis.  Aliviava-me pelo tempo que ainda começava a se descortinar e pelas outras janelas que eu teria.
     Uma das janelas preferidas na minha infância eram os livros que chegavam à porta. Minha saudosa irmã mais velha, já falecida, era sócia de um clube de leitura e eu mal continha a alegria quando traziam um novo volume, que às vezes era a primeira a devorar. De best-sellers internacionais a autores brasileiros, mergulhava em universos bem longe dali, mas via como tudo ao meu redor daria um romance. Vivíamos da comédia ao drama familiar em nosso 3 quartos do prédio de quatro andares sem elevador – um dentre os sete edifícios da vila que terminava num beco com saída para outra rua.  Esse beco era, para mim, o estreito limite sempre a atravessar.
     Lembro de detalhes peculiares da época. O leite em garrafas de vidro e as bisnagas enroladas no papel aguardavam nas portas do prédio junto com os jornais, enquanto soavam os primeiros apitos da fábrica de cerveja. Minha mãe fervia litros de leite por quase uma hora, e não era raro esquecer a grande leiteira no fogo. A espuma branca com nata invadia o fogão, ela esbravejava e transformava o leite em ´cachorrada`, espécie de ambrosia encaracolada - doce sabor de minha infância, assim como a bananada puxa-puxa e o refresco de groselha.
     Nada em nosso apartamento silenciava. Os barulhos do arrastar das bicamas, da música brasileira tocando na vitrola e das brigas pela disputa do banheiro e do lugar à mesa ou pela roupa usada às escondidas misturavam-se aos gritos do amolador de facas, do vendedor de pamonhas, do pipoqueiro e do sorveteiro. Na cozinha, onde o telefone preto de parede tocava o dia inteiro, a sinfonia era de chaleira chiando, martelar de bifes, picar de legumes, abrir e fechar de armários, panelas, louças... Lá, mamãe fazia o milagre de multiplicar a comida, alimentando seus próprios sonhos.
     Ainda escuto suas lamúrias sobre os afazeres domésticos e o projeto adiado de comprar um amplo 4 quartos, vendo-a assistir ao “Telecurso 2◦ grau” na TV, com fascículos ao colo cheios de anotações a estudar, ou fazendo suas longas orações. Ouço também meu pai falar ao telefone sobre seus processos criminais e a nos contar anedotas, vendo-o chegar à noite com alguma surpresa: amendoins torrados, uma caixa de bombons ou um divertido truque de mágica. Ao fundo, soavam cochichos, travessuras, choramingos.
     Se aquelas paredes falassem, contariam sobre a vida brotando nos filhos e netos e avançando com o envelhecimento. Falariam de lágrimas e mãos dadas, bagunças e estudos, decepções e sonhos, sofrimentos e vitórias, desânimo e fé. Muito seria dito sobre o que foi repartido, negado ou perdido por necessidade - por falta de dinheiro ou espaço -, mas também sobre o que restou inteiro, afirmado e encontrado. Neste meu primeiro abrigo, onde passei a maior parte de minha vida, aprendi a aceitar frustrações, a querer ser mais do que ter e a fazer dos pensamentos o meu lugar de estar sozinha.
     Ao vasculhar armários e retirar a poeira de meio século de vida, eu e meus irmãos acharemos o que de mais precioso guardar e o que preferimos jogar fora ou reciclar. Não refiro-me apenas a objetos ou reminiscências, mas a quem fomos, somos e ainda podemos ser com o que cada um viveu e acalentou secretamente naquele velho apartamento. Ele será esvaziado e povoado por novos sons e sonhos, mas, alicerces em que nos construímos, seguirá dentro de nós.


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Vládia Farias (1)
 Google Imagens (2)

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