domingo, 13 de dezembro de 2015

A felicidade vem de dentro



Mais um ano terminou. Época de checar metas atingidas, promessas não cumpridas e surpresas, boas ou más. Fazemos a retrospectiva mental de fatos pessoais marcantes: a viagem realizada, a morte de alguém querido, o início de um amor, o exercício físico adiado, o novo emprego... Muitos contabilizam o saldo da felicidade, como se esta pudesse ser pesada numa balança de prós e contras, para então ser sentida.  Não raro lamentam: “Este ano não foi feliz para mim! O Ano Novo tem que ser melhor”. Mas, afinal, não somos nós que devemos ser felizes e melhores?
     Colocamos o peso da felicidade sobre os fatos, os outros, os anos, esquecendo-nos de que ela deve vir leve (do contrário, é fardo) e de dentro. Ser feliz é, na maioria das vezes, um aprendizado: tirar o melhor dos momentos – alegres e tristes, especiais e banais -, tramando-os como fios de um mesmo novelo.  É natural que conquistas materiais e realizações nos motivem, assim como perdas e situações difíceis nos desestabilizem. Mas estar bem, feliz, é um patamar acima de bem-estar ou adversidades. Tem a ver com a satisfação por quem nos tornamos.
     Somos partes de um todo – do universo, do planeta, de uma nação –  que nesse ano se mostrou difícil, por vezes cruel, com símbolos da infelicidade sem fronteiras. Nos indignamos e até choramos com o que vimos, porque nossos conscientes e inconscientes estão conectados e o sofrimento coletivo nos atinge. A hora, porém, é de analisar o que desejamos, superamos e alcançamos nos últimos doze meses, em nossa conexão interior por felicidade. Porque ser feliz é se conhecer e se gostar cada vez mais, para estar pleno de si e irradiar boas energias. Todo ano temos essa chance.
   Felicidade é aceitar a transitoriedade da vida, dos momentos e das necessidades que precisamos suprir para sermos felizes a cada fase: juventude, maturidade, velhice. Somos felizes de um jeito aos vinte, trinta anos, mas seremos de outros aos quarenta, aos cinquenta e depois. Seremos felizes até o fim se entendermos que tudo passa (as piores tempestades e as mais férteis colheitas), mas poderemos seguir explorando novos horizontes e nossas potencialidades.  Todos mudamos. Ainda que pouco, menos do que gostaríamos, o suficiente para sonhar outros sonhos.
      Ser feliz não é sinônimo de alegria e de vida perfeita, tampouco estar triste e com problemas é o seu oposto. A felicidade verdadeira pode se revelar em miudezas e dúvidas e escapulir entre enormidades e certezas. Você pode viver sua tristeza, mas sentir-se feliz por respeitar seus momentos de dor ou reflexão e crescer com eles. Ao contrário, se descobrir imensamente infeliz vivendo entre prazer e diversão, mas caindo no vazio quando a adrenalina e a empolgação diminuem. 
     Há pessoas que, ao invés de descobrirem o que de fato as faz felizes, vivem sob holofotes um simulacro de felicidade, em cenários fantásticos ou alto-astral. Despencam de suas montanhas-russas emocionais com seus êxtases e depressões, porque não se permitem pensar e se depurar. Se algo lhes dilacera, ignoram que é hora de recolhimento para juntar pedaços e que a felicidade não estará em vitrines, festas ou fotos postadas. No máximo, isso causará euforia, excitação e vaidade, que inebriam mas também viciam.
     Não dormimos e acordamos felizes todos os dias, mesmo com o amor ao nosso lado e a sorte nos sorrindo com frequência. Nos cansamos devido à rotina, nos decepcionamos com fatos e pessoas, nos sabotamos por falta de confiança, mas em meio a tudo isso é possível deixar a felicidade nos invadir, vivendo com simplicidade e plenitude os nossos momentos. Pense nisso durante o novo calendário e curta o chamego com companheiros e filhos, descubra novas habilidades, desfrute o prazer de sua exclusiva companhia... Há tanto a se fazer... Se houver compromisso com a felicidade, ela virá. 
     Se sua lista de desejos para o ano que passou ficou longe de ser realizada, ou foi sem lhe fazer feliz, é hora de rever seus itens e olhar para dentro de si. Sinta, mude, improvise. Troque a musculação por pilates, a viagem internacional por Lumiar, a profissão estressante pela arte adormecida... A felicidade pode estar fora do script, em se abrir ao imprevisível e ao não experimentado. Como tomar um delicioso banho de chuva de verão, tão desejado quando criança mas nunca permitido. 
    Que nossas preces para o novo ano incluam coragem e inspiração para sermos felizes, seguindo nossos melhores sentimentos e intuição. Muito além de metas.



Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay

domingo, 6 de dezembro de 2015

Entre estrelas e sonhos


Muitos mistérios entre o céu e a terra voltaram a me interrogar quando virei mãe. As frases e perguntas criativas e instigantes de meus filhos me fazem perder o fôlego, procurar respostas entre a religião e a ciência e, diante do inexplicável, repensar a vida sob o prisma da encantadora filosofia infantil. Com eles, aprendi que a inocência e o faz de conta são como as metáforas e a poesia, transformando com beleza o irreal em possível, o corriqueiro em raridade, o vazio em imaginação. Com a chegada do Natal, relembro memórias em que significados emergiram de instantes de magia.
     Em breve, minha filha completará onze anos de momentos assim. Sua cabecinha sempre foi enfeitada por pérolas sobre a existência - a sua e a da vida em geral, o começo e o fim. Aos três anos me revelou, soluçando, estar com saudade da avó paterna que falecera um ano e meio antes. Ainda bebê, Júlia passou a chorar com atípica frequência, sentindo a perda daquela com quem teve um curtíssimo mas intenso convívio. E mesmo que o tempo houvesse passado alegremente para a minha pequena menina, a ausência batia novamente forte em seu coração, pedindo-me explicações:“Aonde vovó estava? Por que morremos?”. 
     Para apaziguar seu coração - e por crer que bons espíritos viram luzes num lugar sereno – lhe disse que a avó se transformara em uma estrela no céu. Deus havia decidido sua hora de partir, mas ela estava bem e olhando por nós lá de cima. Era tarde da noite e Juju dormiu, reconfortada. Meses depois, com essa história ecoando em si, contou-me empolgada que tinha aprendido na escola que certas estrelas, chamadas cadentes, caíam na terra.  Seu raciocínio me emocionou: - Será que um dia a vovó cairá do céu e eu vou estar com ela de novo? Respondi a minha estrelinha que sim, em seus sonhos e lembranças.
    No vai e vem entre escola e casa, descobertas e rotina, minha menininha seguiu contemplando o mundo pelas janelas escancaradas da infância. Tímida, aos poucos foi se revelando também questionadora e criativa, capaz de fazer conjecturas, inventar classificações e ilustrar histórias no papel a partir dos quatro anos, idade em que se definiu como ´pré-pré-adolescente`. Nessa época, apelidou seu quarto de “laboratório de sonhos”, trancando sua porta pela primeira vez. Quando perguntei o que fazia ali, quietinha, disse-me que sonhava. Ponderei que era de dia e ela não estava dormindo e ouvi encantada: “Mas eu sonho mesmo é acordada, mamãe...”.
   Sua mente fértil passou a plantar ideias para colher verdades, feito deliciosos frutos maduros.  Como no fim de tarde em que, de costume, passávamos em frente ao antigo terreno baldio onde há meses erguiam velozmente mais um arranha-céu. Ela e o irmão, atipicamente calados, observavam com olhinhos ávidos e arregalados o espocar de letreiros e faróis, as pessoas andando nas calçadas, os vendedores ambulantes, a paisagem... De repente, Júlia rompeu o silêncio que eu já estranhava:
    - Nossa! Esse prédio novo tá enorme! Estão construindo ele porque muitas pessoas nascem e precisam de lugar pra morar, né? Vão ter que construir muitos prédios no mundo!-, disparou, como se divagando sobre superpopulação e déficit habitacional, para segundos depois fazer uma enigmática pergunta.
     - Mamãe, como nasceu ´a` pessoa, hem?
    Achei que era uma repetição do mesmo questionamento – sobre o nascimento dos bebês – que ela tivera meses antes. Como resposta, eu dera a clássica explicação da sementinha do amor que é posta pelo pai na barriga da mãe.  Então, argumentei:
     - Como assim a pessoa, Juju? Todas as pessoas nascem das barrigas das mães, como já lhe contei...
     - Eu quero saber como nasceu a pri-mei-ra pessoa, quando não tinha nin-guém no pla-ne-ta, quando o mundo estava va-zi-o!
    Boquiaberta e sem ação, parada no trânsito, pensei aceleradamente em Gênesis, Teoria da Evolução e nas hipóteses que eu desconhecia sobre tão misterioso assunto. Cautelosa, sem querer influenciá-la, argumentei que aquela era uma pergunta complicada, com várias respostas que eu não conseguiria dar naquele instante, dirigindo. “Quando chegarmos em casa, vou tentar lhe responder, tá?”, prometi.
    - Tá bom...-, disse ela, resignada, um minuto antes de explodir em êxtase de cientista:
    - Já sei, mamãe!!! Não precisa me explicar. A primeira pessoa nasceu do chão! Que nem uma planta! Depois virou uma árvore e deu outras plantinhas... É isso!!!
      Mais do que uma rica e doce tese infantil sobre o início da humanidade, naquele dia vi surgir uma criança perspicaz e entusiasmada pelos mistérios da vida. Minha filha estava crescendo e se construindo, mais rapidamente do que aquele arranha-céu que ficara para trás. Seus tijolos eram feitos de estrelas e sonhos, porém mais indestrutíveis do que cimento. 


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay


domingo, 29 de novembro de 2015

Agradecer é semear


Celebrei o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos há três dias, pela primeira vez.  Eu, meu marido e nossos filhos agradecemos a Deus pelo que colhemos no ano que vai terminando, principalmente a saúde e a oportunidade de viver em outro país, nos enriquecendo culturalmente e nos fortalecendo como família. Agradecemos também pelas conquistas materiais, lembrando que são passageiras.  Em tempos de maldade, ganância e miséria, que não temos mais como evitar que assistam no noticiário, ressaltamos às crianças o valor da bondade, da humildade, da generosidade e da gratidão. São elas que criam raízes e dão bons frutos, se as semearmos e cultivarmos.
    Viver é um milagre e uma dádiva dia após dia. O constante agradecimento por tudo de bom que recebemos – em boa parte gerado por nossas ações – é um ritual de amor à vida, a Deus, ao Universo e a todas forças positivas que conspiram a nosso favor. Mais do que pedir, agradecer gera uma energia positiva que nos revigora e nos envolve, multiplicada. Quanto aos pedidos, inevitáveis, melhor que sejam por tranquilidade, amor, coragem, perseverança e fé. É disso que precisamos para nos blindar contra o mal e enfrentar os percalços rumo a nossos objetivos. O que vier agregado será consequência bem-vinda.
      Temos que agradecer quando amanhecemos junto com o dia e, faça sol ou chuva, frio ou calor, um horizonte de possibilidades se descortina para fazermos valer a nossa existência. Que saibamos dar graças pelas dificuldades e sofrimentos que nos fizeram mais sábios e fortes. E que tenhamos gratidão por transformarmos nossos sentimentos e a nós mesmos. Porque podemos brilhar como o sol no verão e resplandecer como as flores na primavera, mas a vida é também desfolhar-se e recolher-se em reflexão sobre o que passou e em preparação para o que nos aguarda e a essência que queremos deixar.
      Os pensamentos e sentimentos que nutrimos e disseminamos voltam para nós. A Lei do Retorno, mais do que a justiça dos homens, alcança indistintamente a todos. O que fazemos, falamos e pensamos nesta vida e até a nossa inércia não se perdem ao vento: caminham pelo Universo, como ondas vibratórias e espirituais. Por momentos, podem somente atingir outras pessoas, construir ou destruir, causando o bem ou o mal, mas não tardarão a voltar como bumerangues para nós. Nesta existência e em outras. Quanto maior o alcance das nossas ações sobre os outros, mais potência terão as energias positivas ou negativas que retornarão.
      Esse fundamento religioso e científico de ação e reação é ignorado pelos que roubam, matam, trapaceiam ou, de alguma forma, prejudicam.  Não raro percebemos como as forças cósmicas se encarregam de um ajuste de contas. É assim que fortunas são arruinadas, famílias destruídas, consciências atormentadas... Não se trata de vingança. O sofrimento traz aprendizado, arrependimento ou, se a alma se negar a evoluir, simplesmente mais sofrimento. São as leis da vida e do tempo que melhor julgam, absolvem ou condenam, além de nossas próprias consciências. Estas falam por si quando as deitamos nos travesseiros.
      Nossas escolhas têm consequências imutáveis, que podem levar à felicidade ou ao infortúnio, à satisfação ou ao descontentamento. Muitas pessoas se sentem como vítimas injustiçadas do mundo e mesmo de Deus, quando na realidade são frutos – às vezes azedos ou amargos, outras deteriorados – do que cultivaram.  Podem ser também a terra seca ou revolvida onde nada sequer plantaram, apesar da promessa de fertilidade. Ao verem sobre si os problemas desmoronando e a estagnação imobilizando, praguejam. Esquecem-se de que suas ações ou omissões, emoções ou gestos, pensamentos ou palavras causaram os efeitos.
     Muitas pessoas fazem aos outros o que não gostariam que fizessem a elas, desprezando um histórico princípio oriental, atribuído ao filósofo chinês Confúcio, também presente em passagens bíblicas e outros códigos religiosos e éticos. Estacionam em locais proibidos e em seguida reclamam se alguém fura a fila a sua frente. Cometem pequenas fraudes para obter vantagens, mas se indignam com a corrupção. São amantes de pessoas casadas e se revoltam quando são traídas. A lista de incoerências é vasta. Mas se quisermos ser tratados com respeito, consideração e amor, a receita é única: agir do mesmo modo.  Essa é a regra de ouro para a reciprocidade nas relações.
     Claro que existem os que sofrem mesmo sem nunca ferirem outros. Talvez estejam na parcela dos que necessitam de provas ou resgates para evoluir espiritualmente. Ou façam mal a si mesmos com baixa autoestima e depressão. Não se amam, não confiam em si e nem se cuidam, sendo vulneráveis às intempéries da alma e do corpo.  Sempre, porém, devemos agradecer a Deus e lhe rogar como na oração do teólogo Rinhold Niebuhr: “Conceda-me, senhor, a serenidade para aceitar o que não posso mudar, a coragem para mudar o que for possível e a sabedoria para saber discernir entre as duas. Vivendo um dia de cada vez, apreciando um momento de cada vez, recebendo as dificuldades como um caminho para a paz.(...)”.  Amém!




Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay

sábado, 21 de novembro de 2015

O planeta em perigo

Hoje minha prosa não é poética. Fala sobre mortes, dor e destruição provocadas pelo homem nas últimas semanas, mundo afora. O sangue jorrado em Paris após bárbaros ataques terroristas na sexta-feira 13 chocou sobremaneira a nós brasileiros, patinando em 62 milhões de metros cúbicos de lama que soterraram a cidade de Mariana, em Minas Gerais, com o rompimento de duas barragens de minérios. Tragédias que têm em comum o desprezo à vida, além de tristeza, indignação e apreensão pelo futuro do planeta, com sucessivos e irreversíveis danos.

Às margens do Rio Sena, o ódio e a intolerância assassinaram 129 pessoas e feriram 352 de forma covarde e distorcida em nome da religião islâmica. No curso do Rio Doce, a irresponsabilidade e a ganância provocaram 11 mortos, 12 desaparecidos, quase mil desabrigados e a maior tragédia ambiental brasileira. De um lado, o alastramento de atentados que podem atingir qualquer país e pôr fim à paz e às liberdades individuais. Do outro, distritos e rios concretados, vegetação e ecossistema aquático dizimados e água potável poluída por metais, causando desabastecimento em vários municípios. Nos dois casos, perdas de vidas insubstituíveis.

Desgraças como essas não podem ser comparadas para saber qual teve mais prejuízos ou dor. Como infelizmente alguns brasileiros fizeram pela internet, transtornados pelos terrorismos diários cometidos no país seja por bandidos armados ou por políticos corruptos. Cada tragédia deve ser lamentada, chorada, punida e servir de exemplo para evitar outras. A competição fomenta o desrespeito às diferenças, cegando-nos para a compreensão de seus contextos geográficos, históricos e culturais e diminuindo nossa capacidade de compaixão.

O vazamento em Minas era iminente. Fruto da falta de manutenção estrutural nas barreiras, expôs o imprudente – e, por isso, criminoso - sistema de exploração do ferro e outros minérios em solo nacional e suas normas de segurança, por  empresas que deveriam agir com extremo rigor num setor estratégico e perigoso.  Eficiente em fiscalizar a arrecadação de brutais impostos sem contrapartida em serviços, o poder público brasileiro foi, como sempre, omisso no dever de inspecionar uma atividade de risco. Assustam as notícias de que existem centenas de barreiras no estado, além de empresas mineradoras financiarem campanhas políticas e de que uma legislação para o setor dorme no Congresso Nacional há três anos. Aterroriza saber que mais diques podem se romper a qualquer momento. 

Pelas perdas materiais (casas, carros, empregos, agriculturas), décadas para minimizar os danos ecológicos e indenizações bilionárias devidas, uns consideram a tragédia de Mariana maior do que a de Paris. O desastre mineiro, que já chegou ao estado de Espírito Santo e desaguará no Oceano Atlântico, aumentará o avançado desequilíbrio ambiental da Terra e ficará como cicatriz entre as montanhas de Minas. Mas são as vidas perdidas que mais importam.

O atentado terrorista em Paris assassinou inocentes e feriu os princípios universais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade. Todas as nações saem machucadas quando fanáticos cruéis disparam devastadoras armas e bombas contra cidadãos indefesos, simplesmente por achar que eles simbolizam valores e hábitos contrários a sua alegada crença. Nos sentimos ameaçados e vulneráveis com atos bárbaros como esse, que mostram como os braços do terror se espalharam pelo mundo e afetam a segurança e a soberania nacionais. Qualquer país pode ser a próxima vítima.

Viajar deixou de ser prazer e virou risco. Minha irmã e meu cunhado foram testemunhas ilesas do clima de horror em Paris, vivendo momentos de tensão, tristeza e restrições turísticas. Não estavam no lugar e na hora errados, ao contrário das vítimas locais e das 224 que viajavam no avião russo derrubado por uma bomba em 31 de outubro ou das que estavam na África ontem. Horas antes de eu terminar esta crônica, novo atentado de outro grupo terrorista islamita fez 170 reféns e mais de 20 mortos num hotel na cidade de Bamako, em Mali. Tudo isso me faz temer o futuro, principalmente por ter filhos. Que mundo as crianças herdarão?

O ideal de menos fronteiras e mais união tornou-se sonho distante. Os próximos tempos serão de medo e desconfiança. Mas é possível crer na humanidade ao ver a compaixão e a solidariedade de inúmeras pessoas comovidas e solidárias às vítimas. Cidadãos de todo o Brasil se mobilizaram em campanhas de doações em dinheiro, alimentos, água, colchões e roupas, além dos que hospedaram desabrigados em suas casas em Mariana. Em Paris, taxistas levavam vítimas em seus carros sem cobrar e multidões se aglomeraram em vigílias e orações aos mortos.

O planeta está em perigo. Precisamos de medidas ecológicas e de paz coletivas urgentes. Impedir que armas fabricadas no Ocidente cheguem a terroristas e dialogar com muçulmanos para que tentem cessar o ódio de quem não os representa. Modificar o devastador sistema de exploração mineral brasileiro com a participação de ambientalistas, técnicos, líderes comunitários e legisladores. As soluções são difíceis e precisam envolver reflexão, serenidade, união e vontade. Antes que seja tarde.



Texto: Nadja Bereicoa

Fotos: Pixabay

sábado, 7 de novembro de 2015

Mudança, sinônimo de vida


Sair da zona de conforto e mudar, mesmo que para melhor, não é fácil. Implica em arriscar, reconstruir e perder, ainda que algo desgastado. Por acomodação ou medo, fugimos das mudanças que se anunciam em nossos ouvidos, como murmúrios do destino ou de Deus. Se ouvirmos a nossa intuição, às vezes um minuto pode ser um sim a conquistas ou recomeços. O sim para mudanças.

Mudança traz renovação e amadurecimento. É sinônimo de vida, mas é a ideia da finitude que nos impulsiona para ela. À medida que temos menos tempo, precisamos saber aproveitá-lo para sermos felizes, mudando e nos preparando para a maior transformação que virá, espiritual. Sempre podemos mudar. De aparência, comportamento, casa, país... Novos hábitos, experiências, opiniões e amores surgem com as mudanças.

Aos trinta anos, vivi meu primeiro longo ciclo de mudanças.  Perdi minha irmã mais velha, morei sozinha, terminei um relacionamento, me apaixonei de novo e iniciei uma nova trajetória profissional, após onze anos como jornalista. Cursei Direito, estagiei, virei advogada e me decepcionei com a Justiça. Casei, tive dois filhos, focando meu olhar na vida a dois e na maternidade e entrei em crise prestes a completar quarenta anos. Em meio às alegrias, crises e sofrimentos me mudaram, mas muitas vezes precisei brigar contra o costume.

Sem perceber, viramos escravos da rotina porque ela dá segurança. Usamos por décadas um corte de cabelo, nos imaginando com outro visual. Adotamos um cardápio trivial, podendo experimentar receitas. Nos prostramos em frente à TV, quando poderíamos ler ótimos livros. Checamos sem parar os celulares, deixando de nos conectar conosco. Nos acostumamos a não mudar porque o novo nos fascina tanto quanto nos inquieta, assusta.

Mesmo na rotina mudamos se soubermos tolerar e ceder em pequenas atitudes. Quando passamos a não querer discutir e, se isso ocorre, a aceitar que não temos razão ou a abrir mão dela para ter paz. Mudamos ao abandonar comportamentos incômodos, ao abaixar o tom de voz, ao sublimar sentimentos que nos faziam mal. Mudanças podem ser invisíveis em nosso caminhar, mas sempre nos transformam.

Enormes ondas às vezes nos derrubam numa sucessão de caixotes no mar revolto da vida, mas não morremos na praia não.  Levantamos e caímos tanto que perdemos a conta, até nos equilibrarmos e voltarmos a caminhar, cegos pela areia e o sal nos olhos e pernas trôpegas pelos inesperados tombos. Podemos então partir em frangalhos e nos esconder ou ficar, nos recuperarmos do susto e mergulharmos de novo nas ondas, sentindo espraiar-se em nós uma força desconhecida. E ela será a nossa silenciosa e grande mudança.

 


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay

sábado, 31 de outubro de 2015

Com todo o respeito, o medo


Todos nós temos algum tipo de medo: do fracasso, da solidão, de mudar, envelhecer, morrer... às vezes até de viver. Tememos multidão, violência, lugares fechados, altura e outras situações típicas, mas também os desconhecidos lugares onde nosso potencial e nossas vivências podem nos levar. Sim, tememos crescimento e felicidade... Concretos ou irreais, antigos ou imprevisíveis, maiores ou menores, nossos medos nos sinalizam limites. Podemos vê-los como obstáculos ou aliados, ultrapassá-los ou não, sem pensarmos nos extremos de coragem ou covardia. Certo é que esse sentimento merece todo o respeito.
      Sonhei com o medo de forma recorrente, desde pequena até a pré-adolescência. Era uma sensação de perigo iminente a rondar minha casa de madrugada, quando somente eu estava acordada. Um barulho na maçaneta ou passos no corredor me faziam crer em ladrão ou assombração. Para fugir e pedir ajuda, eu descia pela janela do quarto de meus pais, no segundo andar, escorregando por corda ou lençóis até cair no quintal do vizinho. Derrubava o que viesse pela frente, pulava a porta para a vila em que morávamos e atravessava um beco com saída. E corria, corria, corria...
      Às vezes olhava para trás e via um vulto me perseguindo ao longe, o que me fazia correr ainda mais rápido para abrir distância. De pijama e descalça, no mais absoluto breu e em meio a ruas desertas, sentia o vento no meu rosto e uma liberdade e um alívio imensos, misturados à culpa por ter deixado minha família entregue ao suposto perigo. Sem achar ninguém para nos socorrer, somente pensava em me salvar. Quando meu medo se transformava num tênue frio na barriga, eu desacelerava sem parar de correr e o sonho terminava invariavelmente assim. Lembro-me acordando mais frustrada, por não ver o fim da história, do que assustada e tentando interpretar esse estranho sonho que nunca chegou a pesadelo.
    Analisar o medo é uma estratégia para entendê-lo, vencê-lo ou, ao menos, frearmos a fuga. Hesitarmos diante dele pode nos levar a descobertas e certezas, nos tornando mais humildes e seguros ao longo dos anos. Podemos encará-lo de frente, nos pondo à prova até superá-lo, ou entendermos que precisamos conviver com ele da melhor forma possível, controlando-o com rédea curta, respiração controlada, terapia, autoconhecimento ou eventuais tranquilizantes. Se falar em público é o dilema, além de dominar o assunto, tente uma batida no pé para concentrar o sentimento sob a sola do sapato, como eu já fiz. Se o problema for outro, quem sabe algum macete eficaz há de surgir.
     Nem sempre podemos ser ousados, valentes, destemidos. Por vezes precisamos fugir do medo, escondê-lo sob o tapete e adiar o seu enfrentamento até quando (in)sustentável. Mas certamente ser paralisado é a pior das sensações que ele nos provoca: a de impotência. Quem viveu uma síndrome de pânico – como eu, às portas dos cabalísticos quarenta anos – sabe do que estou falando: o corpo e a cabeça se entregam ao choro e à apatia, atávicos, mesmo diante de meras suposições, seja de doença, de bala perdida ou do que surgir na  imaginação. No meu caso, achei que morreria de câncer de mama – como minha irmã mais velha, primeira e dolorosa perda que acompanhei dia após dia. 
    Um nódulo e lembranças doídas me viraram de repente pelo avesso por quatro meses, até o resultado benigno e previsível que eu não conseguia enxergar. Minha ´cancerofobia` (perdoem o neologismo) teve outra forte explicação. Ela veio junto à depressão pós-parto que não me permiti viver após dar à luz meus dois filhos, entre 36 e 38 anos, quando mergulhei de cabeça na maternidade e tentei uma radical guinada profissional. A ideia de faltar àqueles dois pequenos seres, amados mais do que minha própria vida, foi apavorante, mas a seguir passei a me olhar com mais amor, compaixão e amizade, desfazendo outros nódulos de medos da mente.
      Bem antes dessa divisora crise, durante anos fugi por medo e arquei com adiamentos e perdas de experiências (algumas por bem, intuitivamente). Meus maiores receios eram me arriscar, acreditar em mim, me expor e até amar. Quando parei de correr e decidi olhá-los de frente, vi que deixaram de me perseguir e que eles me prepararam para o que sou. Acordada, escolhi o final para o meu antigo sonho. Entendo hoje, mais do que nunca, que se permitirmos que o medo nos escravize, seremos apenas a sombra seca e invernosa do que poderíamos ter sido. 


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay (1) e Nadja Bereicoa (2)

sábado, 24 de outubro de 2015

Choro, chuva que lava e alivia



Nascemos chorando, pela saída do útero, pela luz revelada, por ganharmos a vida. Em nossos primeiros anos, chorar era a melhor forma de revelar e conhecer nossas emoções. Mas envelhecemos valorizando somente o riso na busca pela felicidade, sem nos darmos conta de como o choro é essencial. Por dor e tristeza, alegria e beleza.

Como chuva torrencial de verão, que chega para lavar a alma e aliviar o peito, chorar pode retirar de nossos ombros um peso injusto que carregamos sem saber o porquê. Feito milagres ou conquistas do tempo, pensamentos clareiam espessas nuvens de sentimentos e o choro – como água redentora do céu – termina por dissipá-las. Assim escoam-se culpas, mágoas e desilusões.

Por um sofrimento, um revés ou um enternecimento de vivências e lembranças, chorar não nos faz fracos. Ao contrário, pode nos fortalecer ao nos tornar íntimos de nós, nossos melhores acalentadores. Mesmo solitário, sobre o travesseiro ou sob o chuveiro, o choro nos deixa aceitar o que passou e entender o que ficou, para aguardarmos o que virá com o espírito desanuviado.

Choros são mares tranquilos ou revoltos em que navegamos. Às vezes podem vir em tsunamis avassaladores, transbordando em olhos já cegos por desespero ou desesperança. Nesse caso, é preciso ter cuidado, pois somente pedir resgate ou agarrar-se a algo sólido fará emergir, voltar à terra firme e sobreviver ao naufrágio.

Penso que ficamos mais propensos às lágrimas comovidas na maturidade. Os anos parecem nos fragilizar diante da finitude da vida, mas no fundo alargam a nossa sensibilidade e o nosso sexto sentido em relação ao que verdadeiramente nos toca e nos choca no mundo. Talvez porque estejamos mais perto de Deus.

Sempre fui ´chorona`, apesar de adorar dar boas gargalhadas. Jovem, chorei por medos, decepções e tolas inseguranças. Depois passaram a ser as perdas, os hormônios ou os sentimentos caros a desaguar. Várias lágrimas já brotaram enquanto eu escrevia (ironicamente não esta crônica). Foram gotas serenas, emocionadas, como as de esperados reencontros.

Choramos por amor, solidão, conquistas, perdas... Choramos com os nascimentos dos filhos, com as mortes de pessoas queridas, nas chegadas e partidas. Se os olhos brilham úmidos, por que travar a emoção e deixá-los secos, turvos?  O choro é a expressão da dor de viver, mas também de seu mistério e encanto. Como o orvalho nas flores, os pingos de chuva em janelas ou a tempestade de raios que assusta e depois refresca, limpando o céu e trazendo de surpresa um lindo arco-íris.


 


Texto e fotos: Nadja Bereicoa

sábado, 17 de outubro de 2015

Essa eterna infância que enternece



Infância é onde a história começa

 e, sem pressa, parece não ter fim,

mais do que de não, feita de sim.

É aquele tempo sem tempo, eterno,

que enternece e fica dentro, centelha,

reacendendo quanto mais se envelhece.

Quando a alma percebe o tanto que espelha

a menina e o menino do início do caminho,

e se ainda há vida que vibra e amanhece

com antigos sonhos sob nova esperança,

adulto e criança viram uma só estrela

a luzir no céu do que significa existir.

 

(Centelha, poema de minha autoria)

Bom seria se todos tivessem lindas lembranças dos tempos de infância, que influenciam a vida inteira. Tenho as minhas, incontáveis como cenas de um filme bom, mas meus diálogos e frases perderam-se ao vento. Por isso, para eternizar a intrépida alegria que tem marcado os primeiros anos de meus filhos, venho registrando algumas histórias mirabolantes, perguntas curiosas e tiradas inusitadas que transbordam de suas cabecinhas. São momentos de pureza e doçura que vivencio, enquanto cresço e volto um pouco a ser criança.
     Hoje quero falar de meu caçula, nome e jeito de anjo travesso. Galanteador desde bebê, é capaz de sorrisos marotos, piscadas de olho, declarações de amor e elogios para conseguir algo, se desculpar ou, simplesmente, expressar seus sentimentos. Como numa inesquecível tarde solar, quando ele, aos quatro anos, a irmã, eu e o pai estávamos a caminho do cinema. Ao me ver mais maquiada e arrumada do que de costume, meu menino exclamou faceiro. com um sorriso desses de alargar a vida:
     - Mamãe, eu quero te falar uma coisa: você é... uma jarra de mulher bonita!!!

Fiquei comovida e impressionada com a espontânea metáfora criada por Gabriel. Jarra, provavelmente, lhe fez lembrar flores. Aos seus olhos, eu era mais do que uma mulher bonita. Era um buquê de muitas! Fiquei nas nuvens, não pelo elogio apaixonado e por sua habilidade com a linguagem. Ganhei para sempre aquele dia e uma nova história para lembrar sobre as minhas crianças.
     Três dias depois, ao buscar meu pequeno no colégio, de novo suas ingênuas palavras me surpreenderam. Desta vez, entretanto, ouvi dele uma constatação sincera, revelação nua e crua que até então ninguém havia feito a meu respeito (a não ser eu mesma, frente ao espelho). Sério e sereno, mão ao queixo, refastelado em sua cadeirinha como observador atento dos fatos, me avisou:
     - Mamãe, você tá ficando velhinha, hem!
    - Por que você acha isso, filho?-, quis saber ansiosa, do alto dos meus 42 anos, olhando para ele pelo retrovisor enquanto tirava o carro da vaga e mirava as raízes brancas nos cabelos com tinta já vencendo, ruguinhas e olheiras denunciando noites mal dormidas (muitas vezes porque ele me acordava, assustado com pesadelos...) ou outra pista dos anos.
     - É por causa dessas coisas gordinhas e azuis em cima das suas mãos -, ele disse.
    Parei e olhei para as minhas mãos postas no volante. Veias azuladas e proeminentes sobressaíam delas, claras marcas da genética e da idade também presentes em meu pai e minha mãe. Foi certamente nos avós, já bem idosos, que meu anjo passou a enxergá-las como sinônimo de velhice. E agora eu estava ali, dando risada sem qualquer crise de idade, “velhinha” apenas 72 horas depois de ser “uma jarra de mulher bonita”.  Como ele mesmo sempre dizia à época, para tudo que achasse natural, “a vida é assim!”.
    Em preciosos minutos expliquei a meu filhote que sim, eu estava envelhecendo, o tempo havia passado e continuaria a avançar... como acontece com todos.  Ainda não era uma ´velhinha`, lhe garanti, mas desejava muito ser um dia para vê-lo crescer, se transformar em homem e ficar ao seu lado o maior número possível de anos.  Acariciei uma de suas mãozinhas – pele lisa como seda – e voltei as minhas ao volante, pois tinha que buscar minha outra amada criança na próxima escola.
     Muitas palavras e histórias encantadas me aguardavam pelo tempo afora. E se minhas veias das mãos dilatassem ainda mais, que fosse assim. Importantes serão o sangue, a vida e o amor pulsando nelas até o fim. Eternamente.


Texto:Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Meu pai em patchwork




Meu pai partiu aos 91 anos, cedo para quem brincava com o trocadilho de que chegaria aos cem, “mesmo sem ouvir, sem enxergar, sem falar".  Foram três anos de prostração sobre sua cama, ao final quase sem os sentidos, devido ao acúmulo de doenças senis. Talvez um preparo espiritual para um agnóstico como ele, talvez um purificador ajuste de contas, talvez por que temesse e postergasse a morte... Certo é que não havia mais vestígio do pai presente, do eloquente contador de causos, do ético Procurador de Justiça, do admirado mestre universitário. Ou de todos que ele foi.
     Como a uma imensa colcha de retalhos, por anos tentei remendar papai e as suas intensas pluralidades: misto de inteligência, generosidade, retidão e muita alegria, mas também vaidade, prepotência, ambiguidade e doses de loucura. Desisti de entender seus defeitos e o desvendar numa inútil procura, preferindo achá-lo naquele que sempre habitou em mim e que costurei neste pequeno patchwork textual com algumas de minhas melhores memórias dele.
     Preferi guardar aquele pai divertido, companheiro e carinhoso que me levava a cinemas, parques e lanchonetes, que fazia cabaninhas com lençol, teatros de sombras na parede e que cantava e contava histórias na hora de dormir. Aquele que adorava comprar enciclopédias, livros, fotonovelas e gibis para incentivar a leitura em casa e que tinha sempre vozes e piadas divertidas, palavras inventadas, estridentes assobios, espirros e gargalhadas. Era capaz de se jogar no chão e espernear de tanto rir, numa performance de artista circense.
     Meu pai era a criança grande que farreava comigo na piscina do clube e, na praia, me ensinou a pegar jacaré nas ondas do mar e a construir castelos, catar tatuís e empanar e rolar o corpo na areia, se deixando ser feliz. E era trivial a sua noção de felicidade: comida farta e saborosa, se possível dobradinha ou rabada, petiscos e uma bebida para relaxar (a cerveja com bastante colarinho e não muito gelada...) e a companhia de minha mãe e seus sete filhos, além de uma prosa com os amigos. Ah, como tinha amigos esse festeiro assumido, sempre às voltas com confraternizações.
     Escolhi eternizar meu pai no criminalista amante das leis, da doutrina jurídica e do poder de argumentação das palavras que, com igual senso de Justiça, conseguia prender pessoas mas livrar outras (até dos sinistros porões da ditadura militar), assim como no professor querido, merecedor de várias placas de patrono e paraninfo das turmas em que lecionou. Em casa, ensinava aos filhos a perseguir com esforço e estudo suas metas e que honestidade e princípios eram os maiores bens de nossas vidas. 
     Ele era o idealista que, mesmo lembrando o direito de todos à defesa, se recusou a advogar para bicheiros por convicção moral. Alguém que, mesmo precisando, não pedia favores "Morro teso, mas não perco a pose", brincava. Era aquele que considerava o serviço público um sacerdócio e não uma fonte de enriquecimento ou enganação. O mesmo que, por falta de tino e de ambição, deixou de amealhar bens ainda que com ótimo salário, enquanto por décadas se encalacrou com altas mensalidades escolares. Seu maior patrimônio - orgulhava-se - era a educação de qualidade que proporcionou aos filhos.
     Meu pai era o homem que desde pequena eu vi, incansável até os oitenta anos, sair para trabalhar e voltar para casa à noite com satisfação, trazendo o pão, os saudosos Jornal do Brasil e revista Manchete e às vezes pesados processos criminais. Envergava seus ternos variados (nas sextas-feiras ensolaradas os de linho branco impecáveis, que voltavam sempre amarrotados...), com um pente no bolso para ajeitar os cabelos com goma e seu bigodinho marca registrada. Tudo isso quase sempre andando a pé, de ônibus ou de metrô pela cidade, pois teve medo de aprender a dirigir.
     Preferi guardar em mim o pai que enaltecia, com brilho nos olhos e teatral exagero, as qualidades e facetas de sua esposa e de cada um de seus filhos. O pai que nunca me bateu e gostava de me abraçar, me beijar, me fazer cafuné e cócegas e dizer que me amava.  Aquele alquebrado pai que, lembrando nostálgico o passado, me confidenciou no fim da vida: "Foram tempos bem difíceis mas muito felizes, não é...? Sabe que eu viveria tudo, tudinho, de novo?!”. Eu também, pai... - pude então lhe dizer. 
     Emotivo, arroz-de-festa, honesto, piadista, justo, trabalhador, amoroso e tantos outros que eu gosto de lembrar. É este o pai que viverá para sempre em mim e ao qual sou eternamente grata. 



Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay (1)
            Nadja Bereicoa (2, reprodução de pintura de David Farias)






sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Naquele apartamento, numa vila da Tijuca

Lembranças afloram em cada canto naquele velho apartamento numa vila da Tijuca, hoje à espera de um inventário, uma arrumação e quem de novo o habite, mas que por quatro décadas pulsou de sons, alegrias, afetos. Por trás de sua porta, quantas coisas ainda guardadas e tragadas pelo tempo: cadernos da alfabetização, fotos amareladas, primeiros livros preferidos, memórias adormecidas...Acordo em mim cenas de encantamento em meio à fatigante rotina de meus pais e seus sete filhos – seis mulheres e o único homem ao meio, sendo eu a raspa do tacho.  
     Ecoaram ali as mais estridentes gargalhadas e gritos dessa família, famosa na ruela de paralelepípedos que, até os meus dez anos de idade, tinha parte do chão em terra. Era marcando nela com gravetos que desenhávamos amarelinhas para pular até o céu inventado. Sob o céu real, povoado por pombas pretas, cinzas e brancas e pipas multicoloridas - que meninos como meu irmão empinavam e cruzavam -, cresci pulando cordas, entre queimados, piques, passa anel, cinco marias e brincadeiras que faziam daquele tempo um voo. Com asas, eu ia à magia da vida.
     Do parapeito do 201 do bloco 6, onde minha mãe cultivava vasos de plantas como seu  jardim possível, crianças em algazarra e uma arborizada pedreira eram as melhores vistas da vila de janelas próximas umas às outras e cheia de fuscas, chevettes e nossa inesquecível variant (verde abacate, onde cabia toda a família, mas isso dá outra história...). Eram também meu quintal comunitário e minha floresta inalcançável – ambos, meu pequeno horizonte.  Quando estava de castigo, debruçava-me sobre os cotovelos no peitoril, mesmo hábito das vizinhas à cata de novidades. 
     Uma delas, senhora de seus 90 anos que morava no térreo abaixo de nossa casa e com quem mamãe proseava, colocava almofada sob os braços para assistir a vida da janela - sem mais calos. Lembro-me de seu rosto encarquilhado insinuando a antiga beleza, sob cabelos de algodão em coque, à luz de um meigo sorriso e cristalinos olhos azuis. Ao chegar da escola nos fins de tarde, sentia ternura e tristeza ao vê-la em sua calma espera por algumas palavras ou um afago nas mãos com manchas senis.  Aliviava-me pelo tempo que ainda começava a se descortinar e pelas outras janelas que eu teria.
     Uma das janelas preferidas na minha infância eram os livros que chegavam à porta. Minha saudosa irmã mais velha, já falecida, era sócia de um clube de leitura e eu mal continha a alegria quando traziam um novo volume, que às vezes era a primeira a devorar. De best-sellers internacionais a autores brasileiros, mergulhava em universos bem longe dali, mas via como tudo ao meu redor daria um romance. Vivíamos da comédia ao drama familiar em nosso 3 quartos do prédio de quatro andares sem elevador – um dentre os sete edifícios da vila que terminava num beco com saída para outra rua.  Esse beco era, para mim, o estreito limite sempre a atravessar.
     Lembro de detalhes peculiares da época. O leite em garrafas de vidro e as bisnagas enroladas no papel aguardavam nas portas do prédio junto com os jornais, enquanto soavam os primeiros apitos da fábrica de cerveja. Minha mãe fervia litros de leite por quase uma hora, e não era raro esquecer a grande leiteira no fogo. A espuma branca com nata invadia o fogão, ela esbravejava e transformava o leite em ´cachorrada`, espécie de ambrosia encaracolada - doce sabor de minha infância, assim como a bananada puxa-puxa e o refresco de groselha.
     Nada em nosso apartamento silenciava. Os barulhos do arrastar das bicamas, da música brasileira tocando na vitrola e das brigas pela disputa do banheiro e do lugar à mesa ou pela roupa usada às escondidas misturavam-se aos gritos do amolador de facas, do vendedor de pamonhas, do pipoqueiro e do sorveteiro. Na cozinha, onde o telefone preto de parede tocava o dia inteiro, a sinfonia era de chaleira chiando, martelar de bifes, picar de legumes, abrir e fechar de armários, panelas, louças... Lá, mamãe fazia o milagre de multiplicar a comida, alimentando seus próprios sonhos.
     Ainda escuto suas lamúrias sobre os afazeres domésticos e o projeto adiado de comprar um amplo 4 quartos, vendo-a assistir ao “Telecurso 2◦ grau” na TV, com fascículos ao colo cheios de anotações a estudar, ou fazendo suas longas orações. Ouço também meu pai falar ao telefone sobre seus processos criminais e a nos contar anedotas, vendo-o chegar à noite com alguma surpresa: amendoins torrados, uma caixa de bombons ou um divertido truque de mágica. Ao fundo, soavam cochichos, travessuras, choramingos.
     Se aquelas paredes falassem, contariam sobre a vida brotando nos filhos e netos e avançando com o envelhecimento. Falariam de lágrimas e mãos dadas, bagunças e estudos, decepções e sonhos, sofrimentos e vitórias, desânimo e fé. Muito seria dito sobre o que foi repartido, negado ou perdido por necessidade - por falta de dinheiro ou espaço -, mas também sobre o que restou inteiro, afirmado e encontrado. Neste meu primeiro abrigo, onde passei a maior parte de minha vida, aprendi a aceitar frustrações, a querer ser mais do que ter e a fazer dos pensamentos o meu lugar de estar sozinha.
     Ao vasculhar armários e retirar a poeira de meio século de vida, eu e meus irmãos acharemos o que de mais precioso guardar e o que preferimos jogar fora ou reciclar. Não refiro-me apenas a objetos ou reminiscências, mas a quem fomos, somos e ainda podemos ser com o que cada um viveu e acalentou secretamente naquele velho apartamento. Ele será esvaziado e povoado por novos sons e sonhos, mas, alicerces em que nos construímos, seguirá dentro de nós.


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Vládia Farias (1)
 Google Imagens (2)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Saudade





Saudade é sempre bonita:
triste, alegre, amena, doída.
Vem como fisgada no peito,
risada gostosa, lágrima furtiva...

Saudade é ferida que sangra
mesmo quando cicatriza
e marca os ciclos da vida,
mudança, perda e partida.

Saudade é lembrança boa
de um momento, de pessoa,
do que fomos, de um jeito,
de mania e até de defeito.

Saudade é breve ou eterna
de quem está longe, morreu,
mudou por fora, por dentro
ou simplesmente cresceu.

Saudade é ausência que arde
na medida do quanto se ama
e clama em nós por resgate,
 reparo, reencontro, retomada.

Saudade é vazio imenso, denso,
para preencher com caminhada.


                                                                    Poema e foto: Nadja Bereicoa

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Novos caminhos em outra conexão



     Logo após o meu aniversário, me presenteio com este blog para compartilhar minhas crônicas, poesias e outras histórias.  Mais do que divulgar minha produção, o que comecei a fazer no final de 2014 ao publicar meu primeiro livro  (Entre Tantos - poemas e poesias), resolvi me dar de presente a coragem de me expor e me conhecer a fundo, desatando nós e desembrulhando íntimos sentimentos, memórias e impressões. Em Outra Conexão representa a fase de reflexão que atravesso e uma pausa no ritmo frenético a que estamos conectados pela tecnologia. 
     O blog consolida um forte ciclo de mudanças soprado por 2015, que começou difícil mas desafiador para mim.  Janeiro veio radiante de sol e calor e também com neblina e frio, ruptura e recomeço, conquistas e perdas.  Após celebrar o aniversário de dez anos de minha filha - marcando sua nítida passagem para a adolescência e minha primeira década de maternidade - fui morar em outro país devido ao trabalho de meu marido.  Seguimos com nossos dois filhos rumo a um futuro que não bateria à nossa porta outra vez: já prenunciado por grandes aprendizados. Na bagagem, expectativas, euforia e fé misturavam-se a dúvidas, tristeza e despedidas temporárias e definitivas.
     Minha primeira dolorosa perda aconteceu uma semana após chegarmos na tranquila e gélida cidade de Katy, no Texas: meu pai também partiu, mas para outra, misteriosa e eterna viagem que todos faremos.  Acamado por doenças neurológicas, ele preparou-se em três anos de sofrimento, apego e aceitação até sua final redenção, aos 91 anos.  Ao me despedir dele dias antes de entrar em um avião, enquanto acariciava seus cabelos e beijava seu rosto, sussurrei ao seu ouvido que deixasse sua alma suavemente vivenciar novas experiências. Segurei forte a sua mão, como ele fazia comigo, agradeci por ter sido um pai tão marcante e lhe pedi que não temesse nada. Saí chorando a certeza de que não o veria mais nesta existência.
     Esse derradeiro e inesquecível encontro foi o que me sustentou quando recebi a notícia de sua morte por telefone, com um oceano a separar minhas lágrimas do seu corpo a ser sepultado.  Meu luto à distância foi um divisor de águas, longo e solitário funeral em que desenterrei fortes dores e doces lembranças, reencontrando meu pai e minha mãe, falecida há dois anos, para guardá-los vivos em mim. Resgatei a criança que fui de um sentimento de orfandade aberto como cratera sob seus pés, deixando-a como feto. Sem pais, sem lar, sem país... Nunca mais filha, mas intensamente mãe, eu a abracei, a confortei e a levantei para juntas enfrentarmos um rigoroso inverno e o medo, lembrando-lhe que outras duas crianças nos esperavam.
     Para dar conta de tanta ausência, estranhamento e de uma imensa vontade de voltar a ser feliz, precisei viver minha tristeza, literalmente me desconectando para me religar comigo mesma. Sem redes sociais por meses no novo celular, apenas submersa no voo das aves e no silêncio das folhas de minha pacata vizinhança, voltei a escrever e a pensar como há muito não fazia. Imagens e palavras encaixavam-se como quebra-cabeças na minha mente, mesmo quando me entretinha nas múltiplas providências inerentes à adaptação.  Eu era duplamente estrangeira, precisando localizar-me em novas terras e no meu universo particular, tão voltado para o passado mas repleto de presente e escancarado para cada amanhã. Tinha que seguir
     Não poderia ser mais simbólico o longo trajeto a pé que fiz durante um mês e meio para buscar meus filhos na escola.  Sob um frio entre 0 e 4 graus, eu andava lentamente por quase meia hora contra um vento cortante que me empurrava para trás. Envergava-me à frente, fazendo força para superar a natureza daqueles dias.  E superava, ainda que congelando por fora e por dentro. Na maior, mais arborizada e deserta rua que percorria, a solidão ecoava em mim na medida dos meus passos, que venciam a calçada sombreada pelo rendado das copas como se desbravassem o mundo. A fotografia dessa linda rua, essência de uma frondosa caminhada, jamais sairá da minha retina.
     A travessia de regresso com meus filhos era na mão dos ventos, o que nos impulsionava ainda mais para chegarmos na nossa vazia e quente casa que transformávamos em lar. Nunca foi tão claro como a vida é feita de diferentes caminhos, às vezes somente de ida, outros também de volta; alguns mais difíceis, nem sempre extensos; outros mais fáceis, não necessariamente curtos. Contínuos, bifurcados ou entrecruzados, todos nos guiam para possíveis destinos a depender de nossas certezas, escolhas e disposição.  Se um dia atravessamos avenidas tortuosas, áridas e cheias de percalços e concreto, adiante podemos percorrer ruas de suaves curvas, frescas e repletas de atalhos e jardins. 
     Tenho aprendido com a distância e as estações tão definidas do meu novo hemisfério. O tempo, sábio mestre, desfolha, escurece e esfria, mas também floresce, colore e aquece, bastando deixarmos que ele nos ensine a ver a vida sob o prisma certo. E a mudarmos, quando necessário. Meu inverno desértico cedeu lugar à primavera esplendorosa e ao tórrido verão dos dias atuais, quando o outono já se anuncia para que outro ciclo comece. Meus recentes caminhos me reconduziram ao mesmo antigo destino de escrever, dando sentido à celebração de minha nova idade e à criação do blog.  Afinal, mais do que passagens de anos visíveis em cabelos e pele, carne e ossos, aniversários devem marcar transformações dentro de nós.  Em outra conexão.



Texto e fotos: Nadja Bereicoa