quarta-feira, 3 de março de 2021

Carta para minha tia

 

Oi, Tia Lourdes!

Lamento não ter me despedido antes de sua partida. Escrevo agora a carta que quis lhe enviar desde o Natal e não consegui. Correria na rotina, pouca inspiração sobre o que dizer, desânimo pelo mundo... Também, confesso, faltou empatia para me sentir no seu lugar. Pensei que haveria tempo, apesar de você estar com 94 anos, num asilo e na pior pandemia em um século, que tornou raras as visitas antes assíduas de minhas irmãs. Dois anjos sem asas, testemunhas do epílogo de suas memórias e vida.

O ser humano tem essa mania de adiar o que quer fazer e assim os desejos não se cumprem. Fica então a lacuna do que teria sido e sentido e só a imaginação pode preencher. Eu imaginei um texto breve e leve que te abraçasse no meu lugar, falando de mim e minha família e de lembranças carinhosas suas. A memória se desenrolou em novelo ao me ver criança, com você me conduzindo pela mão até a bomboniere da envidraçada e misteriosa “sala de visitas” da casa dos avós Farias. O “palacete da Rua Amaral 14”, segundo seu exagerado irmão. Ah, meu pai...

Sabe, na verdade eu considerava o sombrio casarão cinza mais seu e da Tia Neusa, cuidando até o fim da rotina doméstica e dos velhos acamados, cada qual num quarto, para só depois pensarem em suas vidas. Casaram-se aos cinquenta anos quando absurdamente se dizia que aos trinta a solteiras “ficavam para titia”. Devem ter sido anos sofridos, embora saiba que você teve um trabalho fora, vida social e namorados, o que contribuía para seu jeito falante e bem-humorado – contrastando com o ar tristonho e contido de sua irmã. Te admiro, tia, por a duras penas romper o conservador ciclo de domínio masculino: um pai autoritário e quatro irmãos homens favorecidos.

Volto à “sala das visitas”. O suntuoso cômodo me fascinava quando ia com meu pai ver os avós em sábados ou domingos, dos meus seis aos nove anos de idade. Um lugar cercado por grandes portas duplas com detalhes quadriculados em vidros e espessas cortinas rosas, dando para o escritório e a sala de jantar.  Com sofá e poltronas robustos em tecido dourado e a mesa baixa coberta de espelho, de onde você retirava o pote de bombons para eu escolher um ou dois. Ao entrarmos e sairmos, você girava a chave na porta e eu me achava parte de um momento especial. E  era, embora rápido. O suficiente para me ver de novo ali, sentada no estofado a observar tudo ao redor. Apesar do nome, a sala parecia intocada e nunca receber visitas.

Lembro também que você me dava biscoitos amanteigados de uma lata de bolas vermelhas - saídos de uma das portas dos armários azuis a cozinha branca que dava para o quintal. Pequenas pastilhas pretas hexagonais formavam desenhos de flores salpicadas no chão. Eu gostava de saltitar com uma perna só sobre elas. Como os bombons, eu levava os biscoitos para saborear na sala de estar, encolhida no vão mais baixo sob a escada de madeira clara onde havia uma passadeira vermelho-sangue. Assim eu adoçava a amarga espera até me chamarem para tomar bênçãos de avós que não me reconheciam, alheios em seus leitos. Sentia como se me chamassem para beijar as mãos da morte no andar de cima.

Tia, a carta que imaginei seria diferente desta, que redijo no meu laptop. Seria manuscrita à caneta, com notícias amenas sobre as crianças e os meus escritos, numa folha pautada, posta num envelope e remetida pelos Correios, como as que demoravam dias até chegar, lacradas com cola, selos, carimbos e a ansiada promessa sobre o que abrigavam. Guardo algumas românticas trocadas por meus pais. Imagino que você escreveu e leu várias na sua juventude e se emocionaria com surpresa tão inusitada em tempos tão estranhos e solitários. Etéreos como o álcool que esteriliza e apaga as digitais dos dedos e dias.

Quando soube de sua morte, chorei ao te imaginar abrindo  uma carta minha, mas intuo que agora você lê estas palavras, assim como ouviu as que mentalizei em orações por não ir a seu funeral e à missa de Sétimo Dia. Me desculpe, tia, mas ando com muito medo. Medo do presente e do futuro e talvez por isso tanto volte ao passado... Ele não me assusta, por mais que tenha alguns fantasmas.

Ao menos desta vez não há problemas com internet, como na tarde em que minhas chamadas de vídeo para você não conectaram. Devia ter insistido noutro dia! Agora me resta pensar que sua conexão está a anos luz do wi-fi e de qualquer forma terrena de comunicação, talvez por telepatia. E saber que o que escrevemos, mesmo por trás de vidros, vai sempre além do que queríamos dizer. Congela o tempo e aquece as almas.

Queria te contar, tia, que tenho escrito sobre minhas memórias, incluindo as longínquas sobre mues antepassados de mãe e pai. Como eu os via ou imaginava. Nos últimos anos, passei a querer saber melhor quem eram. A sensação de finitude me faz procurar raízes para entender o que sou, em que terreno fui fincada. Você poderia ter me revelado mais detalhes desse lado da minha família, seus problemas e origens - a cor ´parda` na certidão do vovô, a migração dele e da vovó do Ceará, a loucura rondando ... Sempre  o porquê de todos os cômodos da casa da Amaral 14 se intercomunicarem. Para que tantas portas, tia?!

Nem sei se você responderia as minhas perguntas, se sua memória e sua emoção permitiriam. Mas não se preocupe com isso agora que outras portas se abrem em seus novos caminhos. Eu tentarei destrancar as minhas com as palavras, mas sei que alguns segredos e histórias acabam mesmo sepultados com as famílias. É a lei da vida, que às vezes se decifra somente após a morte. Siga livre e em paz e quando chegar a hora reencontre seu marido, seus pais, sua irmã e seus irmãos, para repararem o que for preciso. Eles, minha mãe e minha irmã gostarão de lhe auxiliar por aí, se é que já não o fazem.

Sabe, tia, creio que a vida na Terra - bela apesar das dilacerantes dores – é breve passagem, provação para a maior evolução que nos aguarda. Temos que fazer o melhor para aprender o que pudermos aqui. Eu, Sidney, Júlia e Gabriel seguimos  com saúde e aprendendo. Juntos. Sozinhos. Confinados em nosso apartamento, não pegamos a Covid e faremos tudo para não pegar. As crianças (quatro anos passaram desde que a visitamos) viraram adolescentes, mas não vivenciam essa fase linda. Isso me entristece. Mais do que a eles, que ainda não se dão conta do quão único é ter dezesseis e quatorze anos. Sei que você falaria: “Como cresceram e estão bonitos!!!”, igualzinho me dizia.

Me emocionei ao saber de histórias suas e receber pelo celular  fotografias achadas em seus poucos guardados, como as que ilustram esta carta. Você e sua grande amiga, lindas em seus vinte anos e com grande semelhança física com minhas irmãs mais velhas, também tão ligadas. Pela primeira vez, vi minha avó paterna de pé, saudável, parecendo uma melindrosa da década de 1920. No verso da foto, a letra do meu pai diz que ela estava com 27 anos, em 12 novembro de 1923. Naquele dia ele completava um mês e você nasceria em três anos. 

Esta carta não é de despedida, mas de reconhecimento da sobrinha e neta caçula a você, à Tia Neusa e à avó que mal conheci. É uma carta de reencontro também comigo e com a herança afetiva das mulheres Farias. As três foram sacrificadas numa família patriarcal, que as subjugou às suas vontades, seus mandos. Meus tios e pai estudaram até o nível superior e constituíram famílias enquanto  irmãs e mãe varriam desejos, cozinhavam frustrações, entrevavam sonhos. 

Tia querida, você foi o último elo vivo na corrente dos meus ancestrais Farias, mas a família não termina aqui. A morte não põe um ponto final nas histórias enquanto as almas dos que partiram habitarem as dos que ficaram. Resgatar e escrever memórias são as formas mais bonitas de perpetuar vidas.

Com amor,


Nadja



Texto e imagem: Nadja Bereicoa