Era um 5 de janeiro de
sol, em 2013, quando minha mãe faleceu sob o chuveiro, deixando muita saudade por sua partida inusitada mas serena, que a poupou de dores. Como digo em um poema, "naquele
calor intenso de verão, as últimas águas que banharam minha mãe foram um
abençoado batismo de despedida, que relaxaram prazerosamente seu coração até
ela, suave e merecidamente, adormecer, enquanto preparavam seu novo alvorecer”.
Missão cumprida, aos 84 anos ela entendeu ser inglório ficar, que isso não
mudaria o destino de filhos, netos e bisnetas. Em boa conta com Deus, ela pôde
decidir agir em outro plano.
Mamãe nunca temeu morrer. Católica fervorosa, falava do fim da vida como a
ida para um local de descanso e reencontro com pessoas amadas. E se
por um lado ansiava se juntar a filha, seus pais e irmãos que já tinham
partido, por outro se via necessária aqui, com suas preces e promessas para os filhos e sua amorosa e agregadora força matriarcal. Foi por isso que não
sucumbiu após minha irmã mais velha ser levada por um câncer em 2000, aos 47
anos, embora tenha tido uma espécie de morte pela metade.
Minha mãe fez promessa e, sem ter
adiantado, deixou de comer doces e pintar os cabelos, seu riso largo se
estreitou e um antigo reumatismo se alastrou. Ainda assim, foi minha cura
quando entrei em depressão pela mesma perda. Viajou comigo ao volante para Cabo
Frio, num road movie somente nosso, com praias, passeios e uma
inédita cumplicidade. Desabafamos sobre amores e sofrimentos, relembramos
histórias, dormimos de mãos dadas, nos abraçamos, rimos e enxugamos lágrimas
uma da outra. Descobri a amiga que sempre tive e em seu ombro castigado chorei
meu primeiro luto, quando quem mais sofria era ela.
Já cicatrizando, fui para o apartamento onde há meses morava sozinha, mas
confesso que pensei em voltar para baixo das asas de minha mãe, ser mimada e
mimá-la, recuperando o tempo perdido quando as rotinas eram pesadas e a casa
lotada. Mas tudo é como deve ser, traçado lá de cima e por nosso livre arbítrio.
Dentre planos a, b, c ou d, escolhemos como viver. Decidi continuar no
meu canto, assim como ela escolheu ter sete filhos - pela tese de procriação do
catolicismo, porque amava ser mãe ou para aumentar o número de filhos homens.
Vieram três filhas, um filho e mais três filhas...
Foram 63 meses de gestações e dezenas de outros com amamentação e
cuidados. Uma vida de abnegações e dificuldades, que enfrentou como guerreira sem
escudo, de peito aberto tantas vezes sangrando. Por isso, da mãe que me teve já
aos quarenta, não me lembro de afagos e beijos demorados na infância, como os
que troco com meus filhos. Entre pia, tanque, fogão e tantos afazeres que
garantiam nossa sobrevivência tanto como os ganhos de meu pai, ela não tinha
tempo para chamegos, o que se permitiu bem mais tarde. Como dizia, viveu épocas
de vacas magras, quando fraldas descartáveis, micro-ondas e máquina de lavar
eram artigos inimagináveis ou de luxo.
Seus mimos, aprendi a aceitar, vinham de jeito diferente: na forma zelosa
como preparava nosso material escolar, no carinho com que costurava roupas de
festa, no tempero gostoso de sua comida, no ajeitar de cobertas nas noites
frias, no fervor sincero de suas orações por cada um de seus filhos - a cada
vestibular, a cada busca de emprego, a cada febre, a cada madrugada na rua.
Seus ensinamentos não vieram em conversas íntimas, mas no seu exemplo de
dignidade, fé e perseverança, no seu apego à família e à honestidade e no seu repúdio
à vulgaridade, no corpo ou no caráter.
Minha mãe não era de anúncio de margarina. Era aquela com lenço e bobes nos
cabelos entre panelas e flanelas que, nervosa porque ter se queimado ou pelo
cansaço, perdia a paciência com os chiliques, artes e brigas e nos dava palmadas.
Depois, se arrependia e chorava disfarçando pelos cantos (mas eu percebia). Era
a que, após nossas palhaçadas, dava um sorriso gostoso com a covinha
pronunciada ao lado direito da boca. A mesma que, vaidosa, se maquiava e se
arrumava com salto alto para nos buscar na escola quando dava ou para o cinema
seguido de pizza na Praça Saens Pena com meu pai. E, ah, como era bonita... por
fora e por dentro.
Mamãe era aquela da missa aos domingos, novenas e romarias. A devota de
Nossa Senhora de Aparecida e São Judas Tadeu que pedia mais para os outros do
que para si, ajudava orfanatos, asilos e parentes, mesmo às voltas com muitas
privações. Era o feijão e o sonho, a praticidade e a bondade que fortaleciam e
inspiravam. Era a que fazia escândalos por medo de lagartixa, que gritava e
socava a mesa nos jogos de futebol do Flamengo e do Brasil e gargalhava segurando
a barriga para não fazer xixi durante as piadas. Senso de humor não faltava à Apparecida.
“É Apiparecida, viu?! Com dois pês!”, ainda a escuto repetir.
Acho que até o fim minha mãe pensou no melhor para os filhos, não
querendo lhes incomodar com progressivas degenerações de saúde. Passou conosco
Natal, Ano Novo e se despediu de cada um. Dias depois, sentada em seu derradeiro
banho, partiu de alma literalmente lavada e cheirosa. Em sua Missa de Sétimo Dia,
enquanto minha irmã lia esse texto, agora com modificações, um médium conhecido a viu sorrindo no altar da Igreja. Isso confirmou o que já intuíamos: seu
espírito seguiu livre e em paz.
Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Google Imagens (1)
Pixabay (2)