domingo, 31 de janeiro de 2016

Prece para o amor


 UMA PRECE PARA O AMOR

 

Que o amor seja o único destino,

mas também seus vários caminhos.

Que ele seja desejo de seguir juntos,

sabendo sempre quando ficar sozinhos.

 

Que o amor seja água fresca que lava

e brasa que, sem doer, dentro queima.

Que ele seja a paciência que teima,

céu em que se pisa, chão onde se voa.

 

Que o amor seja respeito em essência,

o cuidado, o aconchego e a delicadeza.

Que ele seja a ciência da gentileza,

motivo de alegria e alento ao pranto.

 

Que o amor seja encanto em redescobrir

quanto melhor se conhecer um ao outro.

Que ele seja perdão que vem com cura,

pelo tanto que fica e vale a procura.

 

Que o amor se engrandeça junto ao tempo

e se transforme quando a paixão dormir.

Que ele seja forte feito um firmamento

e no seu mar de calmaria nos transporte.

 


Poema: Nadja Bereicoa

Foto: Pixabay




domingo, 24 de janeiro de 2016

Um bem-vindo olhar estrangeiro

   Um ano se passou desde que eu e minha família chegamos ao Texas.  O sol era uma incrível bola laranja no horizonte em que o dia ia rendendo a noite, quando saímos do aeroporto de Houston com destino a Katy, onde viemos morar. Pela janela do carro, a paisagem de planície cheia de descampados, emaranhados de viadutos e roads e grandes casas sem muros... Nascia ali um olhar estrangeiro, sobre o novo lugar, o meu país e sobre mim. Um olhar que me fez superar as fases de isolamento e comparação, num rico processo de aceitação das diferenças e integração.
     A adaptação a outro país pode ser lenta e difícil (pelo menos eu, que sequer havia morado fora de minha cidade, a senti assim) mas é transformadora, uma terapia intensiva que a vida nos impinge.  Cada dia, cada semana, cada mês significam uma etapa vencida, uma organização feita, uma mudança posta em prática. Entramos em choque não somente com a cultura local, mas também com o nosso modo de ver as pessoas e os fatos. Esbarramos com nossos preconceitos, driblamos nossos medos, adquirimos novos hábitos, ajustamos nossas expectativas.
     O primeiro passo para adaptar-se é encarar, literalmente, o vazio.  E isso começa antes da partida.  Fazemos uma faxina espiritual, nos desfazendo de coisas, revendo fotos e desengavetando sonhos.  Deixamos para trás amigos, familiares e casa e embalamos nosso passado junto com pertences. Colocamos partes deles na memória, outras em malas no avião e em containers de um navio a chegar três meses depois. Até que um dia nos vemos sentados em uma caixa de papelão, observando a amplitude de uma casa que não consideramos como lar, do outro lado do mundo. Tendo que sobreviver, aprendemos a improvisar e a ter paciência para esperar, juntar pedaços e refazer a vida.
     Meu baque inicial foi forte. De escaldantes 40 graus cheguei num frio de 2 graus e com 4 horas a menos no relógio, o que me causou um grande cansaço físico e mental. Vivia uma euforia de turista quando meu pai faleceu sete dias após a minha chegada, me fazendo pular logo às fases da negação e do isolamento, com saídas esporádicas para supermercado, levar os filhos à escola e lazer nos fins de semana. Fiz da casa que alugamos o meu casulo, um território onde as fronteiras que precisava romper eram a tristeza e o medo. Ali reavivei memórias e fortaleci a união com minha família - no mesmo barco, viramos todos nau e porto.
     Comparei tudo nos primeiros dois meses: costumes, comidas, lugares, com a saudade falando a favor de minhas raízes.  De cara, no Carnaval, senti falta da alegria, bom-humor e descontração dos brasileiros.  Me surpreendi, porém, com a simpatia dos norte-americanos, taxados de soberbos e formais mas que, no caso dos texanos, se revelaram acolhedores e gentis.  As boas-vindas de sorridentes vizinhos, oferecendo cookies, bolos e ajuda, trouxeram aconchego e a certeza de que os estereótipos nada nos acrescentam. Uma das características que logo passei a admirar e assimilar - com certo sacrifício - foi o lema "Do It Yourself" para as tarefas domésticas. É assustador e ao mesmo tempo libertador.
     Percebi que de fato estava me adaptando ao me matricular num curso de inglês, com pessoas de cerca de vinte países - certamente uma crônica à parte. Um mundo inteiro se revelou para mim numa sala de aula, tão vasto e tão único, tão cheio de contrastes e semelhanças. Com sotaques e experiências próprias, temos em comum o sentimento de pertencer a outro lugar mas querer estar felizes aonde for possível.  Somos expatriados, imigrantes e até refugiados, à procura de conhecimento, trabalho ou, simplesmente, paz. Ainda que às vezes determinadas palavras sejam intraduzíveis – “I miss”, por exemplo, não dá conta de “tenho saudade”...-, os sentimentos têm uma só linguagem: da alma.  
     Estar longe do meu país às vezes dói e, confesso, sintonizar a TV nos  telejornais, programas e novelas brasileiros me conforta, reafirma minha identidade. Mais do que nunca, vejo que a vida é uma constante adaptação a pessoas e situações temporárias ou definitivas que queremos ou precisamos para ser felizes. Isso não significa romper com quem somos ou o que acreditamos. Pode implicar em grandes mudanças ou pequenos ajustes, mas principalmente em procurar o entendimento e a tolerância. Para isso, um olhar estrangeiro, de quem estranha mas quer aprender e aproveitar a viagem, é sempre bem-vindo. 



Texto e fotos: Nadja Bereicoa

sábado, 16 de janeiro de 2016

Cristal e rocha

     Ela é minha eterna flor, meu cristal e minha rocha. Há onze anos chegou para dar um sentido maior e sublime à minha vida. Com sua pureza e alegria, eu aprendo a ser melhor e volto a ser criança. 
    Como sou feliz em lhe ver crescer, brincando e descobrindo! E em lhe amar desmedidamente, para sempre!
     

Júlia, Julinha, minha eterna e doce menina,
flor em botão que aos poucos desabrocha,
cristal delicado que, quando quer, vira rocha.

Seu nome, cheio de juventude, lembra inverno,
ma você, de pleno janeiro, é um verão inteiro
que brilha, salta e mergulha no mais puro astral.

Juju, minha bailarina que rodopia sozinha
entre histórias que sua imaginação inventa,
contos de fadas e pontos de interrogação.

Vá, filha, preencher com ímpeto seu espaço
por tirolesas, toboáguas e o que mais vier,
fazendo da própria inocência o seu regaço.

Vá, filha, a vida é linda e não tem ciência.
Viva-a, mas não tenha pressa de crescer
e leve consigo os seus sonhos de criança.

Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Pixabay





domingo, 10 de janeiro de 2016

Sobre minha mãe e sua partida


    Era um 5 de janeiro de sol, em 2013, quando minha mãe faleceu sob o chuveiro, deixando muita saudade por sua partida inusitada mas serena, que a poupou de dores. Como digo em um poema, "naquele calor intenso de verão, as últimas águas que banharam minha mãe foram um abençoado batismo de despedida, que relaxaram prazerosamente seu coração até ela, suave e merecidamente, adormecer, enquanto preparavam seu novo alvorecer”. Missão cumprida, aos 84 anos ela entendeu ser inglório ficar, que isso não mudaria o destino de filhos, netos e bisnetas. Em boa conta com Deus, ela pôde decidir agir em outro plano.

     Mamãe nunca temeu morrer. Católica fervorosa, falava do fim da vida como a ida para um local de descanso e reencontro com pessoas amadas. E se por um lado ansiava se juntar a filha, seus pais e irmãos que já tinham partido, por outro se via necessária aqui, com suas preces e promessas para os filhos e sua amorosa e agregadora força matriarcal. Foi por isso que não sucumbiu após minha irmã mais velha ser levada por um câncer em 2000, aos 47 anos, embora tenha tido uma espécie de morte pela metade.

     Minha mãe fez promessa e, sem ter adiantado, deixou de comer doces e pintar os cabelos, seu riso largo se estreitou e um antigo reumatismo se alastrou. Ainda assim, foi minha cura quando entrei em depressão pela mesma perda. Viajou comigo ao volante para Cabo Frio, num road movie somente nosso, com praias, passeios e uma inédita cumplicidade. Desabafamos sobre amores e sofrimentos, relembramos histórias, dormimos de mãos dadas, nos abraçamos, rimos e enxugamos lágrimas uma da outra. Descobri a amiga que sempre tive e em seu ombro castigado chorei meu primeiro luto, quando quem mais sofria era ela.    

     Já cicatrizando, fui para o apartamento onde há meses morava sozinha, mas confesso que pensei em voltar para baixo das asas de minha mãe, ser mimada e mimá-la, recuperando o tempo perdido quando as rotinas eram pesadas e a casa lotada. Mas tudo é como deve ser, traçado lá de cima e por nosso livre arbítrio.  Dentre planos a, b, c ou d, escolhemos como viver. Decidi continuar no meu canto, assim como ela escolheu ter sete filhos - pela tese de procriação do catolicismo, porque amava ser mãe ou para aumentar o número de filhos homens.  Vieram três filhas, um filho e mais três filhas...

     Foram 63 meses de gestações e dezenas de outros com amamentação e cuidados. Uma vida de abnegações e dificuldades, que enfrentou como guerreira sem escudo, de peito aberto tantas vezes sangrando. Por isso, da mãe que me teve já aos quarenta, não me lembro de afagos e beijos demorados na infância, como os que troco com meus filhos. Entre pia, tanque, fogão e tantos afazeres que garantiam nossa sobrevivência tanto como os ganhos de meu pai, ela não tinha tempo para chamegos, o que se permitiu bem mais tarde. Como dizia, viveu épocas de vacas magras, quando fraldas descartáveis, micro-ondas e máquina de lavar eram artigos inimagináveis ou de luxo.

     Seus mimos, aprendi a aceitar, vinham de jeito diferente: na forma zelosa como preparava nosso material escolar, no carinho com que costurava roupas de festa, no tempero gostoso de sua comida, no ajeitar de cobertas nas noites frias, no fervor sincero de suas orações por cada um de seus filhos - a cada vestibular, a cada busca de emprego, a cada febre, a cada madrugada na rua. Seus ensinamentos não vieram em conversas íntimas, mas no seu exemplo de dignidade, fé e perseverança, no seu apego à família e à honestidade e no seu repúdio à vulgaridade, no corpo ou no caráter.

     Minha mãe não era de anúncio de margarina. Era aquela com lenço e bobes nos cabelos entre panelas e flanelas que, nervosa porque ter se queimado ou pelo cansaço, perdia a paciência com os chiliques, artes e brigas e nos dava palmadas. Depois, se arrependia e chorava disfarçando pelos cantos (mas eu percebia). Era a que, após nossas palhaçadas, dava um sorriso gostoso com a covinha pronunciada ao lado direito da boca. A mesma que, vaidosa, se maquiava e se arrumava com salto alto para nos buscar na escola quando dava ou para o cinema seguido de pizza na Praça Saens Pena com meu pai. E, ah, como era bonita... por fora e por dentro.

     Mamãe era aquela da missa aos domingos, novenas e romarias. A devota de Nossa Senhora de Aparecida e São Judas Tadeu que pedia mais para os outros do que para si, ajudava orfanatos, asilos e parentes, mesmo às voltas com muitas privações. Era o feijão e o sonho, a praticidade e a bondade que fortaleciam e inspiravam. Era a que fazia escândalos por medo de lagartixa, que gritava e socava a mesa nos jogos de futebol do Flamengo e do Brasil e gargalhava segurando a barriga para não fazer xixi durante as piadas. Senso de humor não faltava à Apparecida. “É Apiparecida, viu?! Com dois pês!”, ainda a escuto repetir.  

     Acho que até o fim minha mãe pensou no melhor para os filhos, não querendo lhes incomodar com progressivas degenerações de saúde. Passou conosco Natal, Ano Novo e se despediu de cada um. Dias depois, sentada em seu derradeiro banho, partiu de alma literalmente lavada e cheirosa. Em sua Missa de Sétimo Dia, enquanto minha irmã lia esse texto, agora com modificações, um médium conhecido a viu sorrindo no altar da Igreja.  Isso confirmou o que já intuíamos: seu espírito seguiu livre e em paz.




Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Google Imagens (1)
           Pixabay (2)