terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Ao doce sabor dos ventos e desejos

Uma solitária e inusitada flor dente-de-leão, rente à calçada, na beira do meu caminho num domingo, me fez agachar por instantes para apreciá-la, tão delicadamente instigante. Pareceu-me um chumaço ralo de algodão - frágil, não propriamente bela e talvez prestes a morrer, pensei... Nunca a  tinha visto. Meus filhos, porém, a conheciam e, entusiasmados, me informaram o seu principal significado: sorte.
   Falaram-me que eu deveria soprá-la fazendo um pedido, para que suas sementes se espalhassem pelo ar e o meu desejo se realizasse. Sem saber sobre suas lendas, não quis destruí-la. Preferi que um vento leve, que soprava bem naquela hora, se encarregasse desse trabalho de forma sutil e desinteressada. Então, observando a flor se desfazer, percebi como a natureza se ajudava e se recriava sozinha. E segui especialmente feliz.
   Mais tarde, ao pesquisar sobre essa exótica flor, descobri fascinada o sentido máximo de renovação e esperança que ela carrega quando, aos pedaços, voa sem saber aonde vai parar, com a feliz certeza de brotar de novo, em um eterno ciclo. Em pleno auge, suas pétalas amarelas com recortes pontiagudos lembram a juba e os dentes de um poderoso leão. Mas sua exuberância, como ocorre conosco, não dura para sempre. Ela se fragiliza, fica apenas com suas sementes que mais parecem espinhos, mas, com vontade de viver, renasce onde cai. Nisso reside a sua força.
    Nós também, ao longo da vida, sentimos as nossas pétalas irem embora, seja pelo curso normal e muitas vezes nada fértil dos dias, seja pelos ventos e intempéries do destino ou porque algumas pessoas as arrancam, nos ferindo. Perdemos o viço, as cores e a energia, sentindo-nos podados em nosso crescimento espiritual, com a apatia e a depressão que nos acometem até sem explicação ou com a deslealdade e a crueldade alheias despejadas em nós.
   De uma hora para outra nos vemos secos, desfazendo-nos como fios ásperos de algodão, sobre nossos caules ainda que enraizados em terra produtiva. Parecemos ervas daninhas crescendo desajeitadas na concretude e aridez dos fatos, quando na verdade estamos apenas sensíveis e desnudados, feito uma frágil e ambígua flor dente-de-leão – rica em propriedades medicinais e místicas e tão desprezada, desapercebida. Mas, como ela, sempre teremos a chance de renascer, se cultivarmos em nós a imagem do que foi esplendor.
    Depurando os mais íntimos sentimentos, escolhendo aquilo e aqueles que nos fazem bem ao soprar as nossas pétalas com delicadeza e as melhores intenções e, principalmente, disseminando nossas essências, voltaremos a espalhar e germinar nossas sementes. Mesmo com nossas incompletudes e em solos ariscos, poderemos nos replantar e reviver, em qualquer terreno. Como às margens das calçadas dos nossos triviais caminhos.
    Da mesma forma que essa mágica e livre flor, que nos deixemos levar ao doce sabor dos ventos e das energias positivas sopradas pelos bons desejos. E que saibamos florescer no tempo certo, até quando parecer improvável ou impossível.


Texto: Nadja Bereicoa
Imagens: Nadja Bereicoa (1)
                Pixabay (2 e 3)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Caleidoscópios vivos

Quem somos de fato?! Tímidos ou extrovertidos? Medrosos ou destemidos?  Racionais ou emotivos? Perdemos tempo nos definindo, sem entender que somos belos caleidoscópios, em inúmeras formas e cores.  Com os reflexos de nossa alma e de nossa história e as lapidações em nossa personalidade, podemos revelar ângulos antes impossíveis, entendendo que a vida é curta para tracejados lineares e em preto e branco.

Precisamos perceber quando metamorfoses se anunciam: novas características se revelam e outras se diluem ou se mesclam, em círculos que se abrem, se fecham ou são concêntricos.  É assim que surgem histórias nada críveis: o hippie da faculdade se transforma num rico empresário da informática, enquanto a executiva bem-sucedida resolve viver de agricultura orgânica. A garota popular da escola vira uma intelectual respeitada e a nerd tímida se torna atriz famosa. A explicação para o que nos tornarmos está, além de no mistério, na vontade.   

A vida também é lúdico caleidoscópio, com desenhos às vezes abstratos escondidos nos dias. A mais corriqueira paisagem revela o que passaria despercebido, mas um detido olhar vê.  De repente um rosto se forma entre as nuvens e duas nesgas de céu nele parecem nos fitar como olhos.  Ou um tapete de folhas de vários recortes e tons – verdes, amarelas e vermelhas – derramadas sobre a calçada, nos faz caminhar levitando. Há beleza e sinais em tudo...

Não devemos ficar presos ao que enxergamos à frente do nariz e a estereótipos sobre os outros e nós ou nos obrigarmos a ser sempre alegres, dispostos, sociáveis ou o que quer que seja. Nossos sentimentos são livres. Nossa aura pode estar monocromática e nosso olhar introspectivo em pleno dia de sol no verão, mas despontarmos coloridos e brilhantes numa noite fria e chuvosa de inverno.

Ninguém é totalmente bom e centrado. Embora as índoles de cada um predominem, temos ambivalências. Um rompante de raiva quando tudo dá errado, um desejo de dar o troco a quem nos prejudica ou outro lado sombrio tiram do eixo até quem tem essência boa. Somos movidos não somente pela razão, mas também por impulsos e instintos. São as reflexões sobre nossas multiplicidades que nos aprimoram. Nossos fragmentos de sentimentos, experiências e possibilidades nos tornam mosaicos. 

Somos caleidoscópios, em constante transformação. Só precisamos da lente certa no olhar para apreciarmos todas as nossas surpreendentes e belas formas. 


Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay
       

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Vestindo a fantasia



     Brincar de ser outra pessoa ou quem no fundo se é, mas não se tem coragem de mostrar. Reinventamos a alegria para celebrar a vida por quatro dias, como se não houvesse amanhã, em meio a confetes, lantejoulas e serpentinas.   Carnaval é alegria e explosão de cores, mas também libertação e ritual de passagem ao que virá de difícil e imprevisível.  Na quarta-feira de cinzas, quando acordamos como de um sonho ou de um pesadelo. 
     Na multidão anônima nos bailes, blocos e desfiles de samba e outros ritmos Brasil afora, gente que espera o ano inteiro - economizando dinheiro e sentimentos - para comemorar conquistas, extravasar frustrações, delirar com o luxo ou se render aos prazeres da carne. Sob máscaras, paetês e purpurinas, as dores se escondem, a pobreza é camuflada, os amores vão e vem. Todos são tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais em sua capacidade de depuração e transformação.           
     O Carnaval é o abre-alas do ano para os brasileiros. Depois de Natal, réveillon e férias, tudo de fato começa quando termina a folia. É hora de botar o carro alegórico na rua e reiniciar  a luta diária pela sobrevivência num país onde o povo tem sido feito de palhaço, no pior dos sentidos. Nosso gingado é diário, traduzido no bom-humor e improviso com que enfrentamos tantas situações adversas.  Nosso jeito de ser é carnavalesco: fazemos tempestade em copo d´água, choramos à toa, douramos a pílula, rodamos a baiana e achamos que recordar é viver.
     Todos temos lembranças de outros carnavais. Matinês inocentes, os primeiros blocos, beijos no salão, um porre homérico... Até a mais absoluta solidão, quando tudo ao redor fervilhava em barulho, êxtase e aglomeração, pode ter tornado um carnaval inesquecível.  Mesmo quando optamos pelo recolhimento é difícil manter-se alheio aos dias de Momo, sem uma espiadela na TV ou nas ruas. Afinal a maior festa popular do mundo é um orgulho nacional, que prova a criatividade, o empreendedorismo e o poder dos brasileiros.
     Nunca fui foliã de primeira, mas ansiava pelos bailinhos quando criança. Segurava avidamente meu saquinho de filó com confetes, que eu jogava ao ritmo de “Allah, meu bom Allah!" e antigas marchinhas. Fui cigana, baiana, marinheira e me fascinava em saber que todos podiam ser quem quisessem naqueles dias. Mais crescida, assistia aos desfiles na TV até o sol raiar ao lado de minha mãe, que gostava de contar como meu pai a cortejava nos bailes em que os rapazes borrifavam inocentes lança-perfumes nas moças. Tempos de Pierrôs, Colombinas e Arlequins.
     O carnaval mudou muito de lá para cá, às vezes desafinando para exibicionismo e excessos, ressacas e arrependimentos. Mas a essência da festa, de celebração da vida, deveria estar presente sempre. Bom seria salpicar sobre os dias um pouco da euforia, da cor e do brilho concentrados num único período do calendário.  Deveríamos nos permitir carnavalizar  mais nossas vidas, com menos culpas e privações. 
     Alegria coletiva confraterniza e revigora. Melhor ainda é quando esse sentimento vem de dentro da gente, sem data marcada, nos fazendo rir e rodopiar sem motivo, até sozinhos. Simplesmente por entendermos que a vida tem sim altos e baixos, sucessos e fracassos, movimentos e quietudes, ensaios e sustos, mas pode ser um enredo (re)criado por nós. Com mais fantasia, beleza e apoteoses. 




Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay