sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Meu pai em patchwork




Meu pai partiu aos 91 anos, cedo para quem brincava com o trocadilho de que chegaria aos cem, “mesmo sem ouvir, sem enxergar, sem falar".  Foram três anos de prostração sobre sua cama, ao final quase sem os sentidos, devido ao acúmulo de doenças senis. Talvez um preparo espiritual para um agnóstico como ele, talvez um purificador ajuste de contas, talvez por que temesse e postergasse a morte... Certo é que não havia mais vestígio do pai presente, do eloquente contador de causos, do ético Procurador de Justiça, do admirado mestre universitário. Ou de todos que ele foi.
     Como a uma imensa colcha de retalhos, por anos tentei remendar papai e as suas intensas pluralidades: misto de inteligência, generosidade, retidão e muita alegria, mas também vaidade, prepotência, ambiguidade e doses de loucura. Desisti de entender seus defeitos e o desvendar numa inútil procura, preferindo achá-lo naquele que sempre habitou em mim e que costurei neste pequeno patchwork textual com algumas de minhas melhores memórias dele.
     Preferi guardar aquele pai divertido, companheiro e carinhoso que me levava a cinemas, parques e lanchonetes, que fazia cabaninhas com lençol, teatros de sombras na parede e que cantava e contava histórias na hora de dormir. Aquele que adorava comprar enciclopédias, livros, fotonovelas e gibis para incentivar a leitura em casa e que tinha sempre vozes e piadas divertidas, palavras inventadas, estridentes assobios, espirros e gargalhadas. Era capaz de se jogar no chão e espernear de tanto rir, numa performance de artista circense.
     Meu pai era a criança grande que farreava comigo na piscina do clube e, na praia, me ensinou a pegar jacaré nas ondas do mar e a construir castelos, catar tatuís e empanar e rolar o corpo na areia, se deixando ser feliz. E era trivial a sua noção de felicidade: comida farta e saborosa, se possível dobradinha ou rabada, petiscos e uma bebida para relaxar (a cerveja com bastante colarinho e não muito gelada...) e a companhia de minha mãe e seus sete filhos, além de uma prosa com os amigos. Ah, como tinha amigos esse festeiro assumido, sempre às voltas com confraternizações.
     Escolhi eternizar meu pai no criminalista amante das leis, da doutrina jurídica e do poder de argumentação das palavras que, com igual senso de Justiça, conseguia prender pessoas mas livrar outras (até dos sinistros porões da ditadura militar), assim como no professor querido, merecedor de várias placas de patrono e paraninfo das turmas em que lecionou. Em casa, ensinava aos filhos a perseguir com esforço e estudo suas metas e que honestidade e princípios eram os maiores bens de nossas vidas. 
     Ele era o idealista que, mesmo lembrando o direito de todos à defesa, se recusou a advogar para bicheiros por convicção moral. Alguém que, mesmo precisando, não pedia favores "Morro teso, mas não perco a pose", brincava. Era aquele que considerava o serviço público um sacerdócio e não uma fonte de enriquecimento ou enganação. O mesmo que, por falta de tino e de ambição, deixou de amealhar bens ainda que com ótimo salário, enquanto por décadas se encalacrou com altas mensalidades escolares. Seu maior patrimônio - orgulhava-se - era a educação de qualidade que proporcionou aos filhos.
     Meu pai era o homem que desde pequena eu vi, incansável até os oitenta anos, sair para trabalhar e voltar para casa à noite com satisfação, trazendo o pão, os saudosos Jornal do Brasil e revista Manchete e às vezes pesados processos criminais. Envergava seus ternos variados (nas sextas-feiras ensolaradas os de linho branco impecáveis, que voltavam sempre amarrotados...), com um pente no bolso para ajeitar os cabelos com goma e seu bigodinho marca registrada. Tudo isso quase sempre andando a pé, de ônibus ou de metrô pela cidade, pois teve medo de aprender a dirigir.
     Preferi guardar em mim o pai que enaltecia, com brilho nos olhos e teatral exagero, as qualidades e facetas de sua esposa e de cada um de seus filhos. O pai que nunca me bateu e gostava de me abraçar, me beijar, me fazer cafuné e cócegas e dizer que me amava.  Aquele alquebrado pai que, lembrando nostálgico o passado, me confidenciou no fim da vida: "Foram tempos bem difíceis mas muito felizes, não é...? Sabe que eu viveria tudo, tudinho, de novo?!”. Eu também, pai... - pude então lhe dizer. 
     Emotivo, arroz-de-festa, honesto, piadista, justo, trabalhador, amoroso e tantos outros que eu gosto de lembrar. É este o pai que viverá para sempre em mim e ao qual sou eternamente grata. 



Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay (1)
            Nadja Bereicoa (2, reprodução de pintura de David Farias)






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