sábado, 31 de outubro de 2015

Com todo o respeito, o medo


Todos nós temos algum tipo de medo: do fracasso, da solidão, de mudar, envelhecer, morrer... às vezes até de viver. Tememos multidão, violência, lugares fechados, altura e outras situações típicas, mas também os desconhecidos lugares onde nosso potencial e nossas vivências podem nos levar. Sim, tememos crescimento e felicidade... Concretos ou irreais, antigos ou imprevisíveis, maiores ou menores, nossos medos nos sinalizam limites. Podemos vê-los como obstáculos ou aliados, ultrapassá-los ou não, sem pensarmos nos extremos de coragem ou covardia. Certo é que esse sentimento merece todo o respeito.
      Sonhei com o medo de forma recorrente, desde pequena até a pré-adolescência. Era uma sensação de perigo iminente a rondar minha casa de madrugada, quando somente eu estava acordada. Um barulho na maçaneta ou passos no corredor me faziam crer em ladrão ou assombração. Para fugir e pedir ajuda, eu descia pela janela do quarto de meus pais, no segundo andar, escorregando por corda ou lençóis até cair no quintal do vizinho. Derrubava o que viesse pela frente, pulava a porta para a vila em que morávamos e atravessava um beco com saída. E corria, corria, corria...
      Às vezes olhava para trás e via um vulto me perseguindo ao longe, o que me fazia correr ainda mais rápido para abrir distância. De pijama e descalça, no mais absoluto breu e em meio a ruas desertas, sentia o vento no meu rosto e uma liberdade e um alívio imensos, misturados à culpa por ter deixado minha família entregue ao suposto perigo. Sem achar ninguém para nos socorrer, somente pensava em me salvar. Quando meu medo se transformava num tênue frio na barriga, eu desacelerava sem parar de correr e o sonho terminava invariavelmente assim. Lembro-me acordando mais frustrada, por não ver o fim da história, do que assustada e tentando interpretar esse estranho sonho que nunca chegou a pesadelo.
    Analisar o medo é uma estratégia para entendê-lo, vencê-lo ou, ao menos, frearmos a fuga. Hesitarmos diante dele pode nos levar a descobertas e certezas, nos tornando mais humildes e seguros ao longo dos anos. Podemos encará-lo de frente, nos pondo à prova até superá-lo, ou entendermos que precisamos conviver com ele da melhor forma possível, controlando-o com rédea curta, respiração controlada, terapia, autoconhecimento ou eventuais tranquilizantes. Se falar em público é o dilema, além de dominar o assunto, tente uma batida no pé para concentrar o sentimento sob a sola do sapato, como eu já fiz. Se o problema for outro, quem sabe algum macete eficaz há de surgir.
     Nem sempre podemos ser ousados, valentes, destemidos. Por vezes precisamos fugir do medo, escondê-lo sob o tapete e adiar o seu enfrentamento até quando (in)sustentável. Mas certamente ser paralisado é a pior das sensações que ele nos provoca: a de impotência. Quem viveu uma síndrome de pânico – como eu, às portas dos cabalísticos quarenta anos – sabe do que estou falando: o corpo e a cabeça se entregam ao choro e à apatia, atávicos, mesmo diante de meras suposições, seja de doença, de bala perdida ou do que surgir na  imaginação. No meu caso, achei que morreria de câncer de mama – como minha irmã mais velha, primeira e dolorosa perda que acompanhei dia após dia. 
    Um nódulo e lembranças doídas me viraram de repente pelo avesso por quatro meses, até o resultado benigno e previsível que eu não conseguia enxergar. Minha ´cancerofobia` (perdoem o neologismo) teve outra forte explicação. Ela veio junto à depressão pós-parto que não me permiti viver após dar à luz meus dois filhos, entre 36 e 38 anos, quando mergulhei de cabeça na maternidade e tentei uma radical guinada profissional. A ideia de faltar àqueles dois pequenos seres, amados mais do que minha própria vida, foi apavorante, mas a seguir passei a me olhar com mais amor, compaixão e amizade, desfazendo outros nódulos de medos da mente.
      Bem antes dessa divisora crise, durante anos fugi por medo e arquei com adiamentos e perdas de experiências (algumas por bem, intuitivamente). Meus maiores receios eram me arriscar, acreditar em mim, me expor e até amar. Quando parei de correr e decidi olhá-los de frente, vi que deixaram de me perseguir e que eles me prepararam para o que sou. Acordada, escolhi o final para o meu antigo sonho. Entendo hoje, mais do que nunca, que se permitirmos que o medo nos escravize, seremos apenas a sombra seca e invernosa do que poderíamos ter sido. 


Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay (1) e Nadja Bereicoa (2)

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