domingo, 24 de janeiro de 2016

Um bem-vindo olhar estrangeiro

   Um ano se passou desde que eu e minha família chegamos ao Texas.  O sol era uma incrível bola laranja no horizonte em que o dia ia rendendo a noite, quando saímos do aeroporto de Houston com destino a Katy, onde viemos morar. Pela janela do carro, a paisagem de planície cheia de descampados, emaranhados de viadutos e roads e grandes casas sem muros... Nascia ali um olhar estrangeiro, sobre o novo lugar, o meu país e sobre mim. Um olhar que me fez superar as fases de isolamento e comparação, num rico processo de aceitação das diferenças e integração.
     A adaptação a outro país pode ser lenta e difícil (pelo menos eu, que sequer havia morado fora de minha cidade, a senti assim) mas é transformadora, uma terapia intensiva que a vida nos impinge.  Cada dia, cada semana, cada mês significam uma etapa vencida, uma organização feita, uma mudança posta em prática. Entramos em choque não somente com a cultura local, mas também com o nosso modo de ver as pessoas e os fatos. Esbarramos com nossos preconceitos, driblamos nossos medos, adquirimos novos hábitos, ajustamos nossas expectativas.
     O primeiro passo para adaptar-se é encarar, literalmente, o vazio.  E isso começa antes da partida.  Fazemos uma faxina espiritual, nos desfazendo de coisas, revendo fotos e desengavetando sonhos.  Deixamos para trás amigos, familiares e casa e embalamos nosso passado junto com pertences. Colocamos partes deles na memória, outras em malas no avião e em containers de um navio a chegar três meses depois. Até que um dia nos vemos sentados em uma caixa de papelão, observando a amplitude de uma casa que não consideramos como lar, do outro lado do mundo. Tendo que sobreviver, aprendemos a improvisar e a ter paciência para esperar, juntar pedaços e refazer a vida.
     Meu baque inicial foi forte. De escaldantes 40 graus cheguei num frio de 2 graus e com 4 horas a menos no relógio, o que me causou um grande cansaço físico e mental. Vivia uma euforia de turista quando meu pai faleceu sete dias após a minha chegada, me fazendo pular logo às fases da negação e do isolamento, com saídas esporádicas para supermercado, levar os filhos à escola e lazer nos fins de semana. Fiz da casa que alugamos o meu casulo, um território onde as fronteiras que precisava romper eram a tristeza e o medo. Ali reavivei memórias e fortaleci a união com minha família - no mesmo barco, viramos todos nau e porto.
     Comparei tudo nos primeiros dois meses: costumes, comidas, lugares, com a saudade falando a favor de minhas raízes.  De cara, no Carnaval, senti falta da alegria, bom-humor e descontração dos brasileiros.  Me surpreendi, porém, com a simpatia dos norte-americanos, taxados de soberbos e formais mas que, no caso dos texanos, se revelaram acolhedores e gentis.  As boas-vindas de sorridentes vizinhos, oferecendo cookies, bolos e ajuda, trouxeram aconchego e a certeza de que os estereótipos nada nos acrescentam. Uma das características que logo passei a admirar e assimilar - com certo sacrifício - foi o lema "Do It Yourself" para as tarefas domésticas. É assustador e ao mesmo tempo libertador.
     Percebi que de fato estava me adaptando ao me matricular num curso de inglês, com pessoas de cerca de vinte países - certamente uma crônica à parte. Um mundo inteiro se revelou para mim numa sala de aula, tão vasto e tão único, tão cheio de contrastes e semelhanças. Com sotaques e experiências próprias, temos em comum o sentimento de pertencer a outro lugar mas querer estar felizes aonde for possível.  Somos expatriados, imigrantes e até refugiados, à procura de conhecimento, trabalho ou, simplesmente, paz. Ainda que às vezes determinadas palavras sejam intraduzíveis – “I miss”, por exemplo, não dá conta de “tenho saudade”...-, os sentimentos têm uma só linguagem: da alma.  
     Estar longe do meu país às vezes dói e, confesso, sintonizar a TV nos  telejornais, programas e novelas brasileiros me conforta, reafirma minha identidade. Mais do que nunca, vejo que a vida é uma constante adaptação a pessoas e situações temporárias ou definitivas que queremos ou precisamos para ser felizes. Isso não significa romper com quem somos ou o que acreditamos. Pode implicar em grandes mudanças ou pequenos ajustes, mas principalmente em procurar o entendimento e a tolerância. Para isso, um olhar estrangeiro, de quem estranha mas quer aprender e aproveitar a viagem, é sempre bem-vindo. 



Texto e fotos: Nadja Bereicoa

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