sábado, 15 de outubro de 2016

Pílulas milagrosas de infância

A infância, em sua essência, bem que podia ser armazenada pela Ciência, em fórmulas naturais para vitaminarmos nossos dias. Uma drágea e a mais sisuda manhã se iluminaria... Ingredientes como alegria, inocência, curiosidade, perspicácia, energia e fantasia seriam receitas milagrosas capazes de transformar a vida, com leveza e humor;                Como isso não acontece, podemos resgatar as crianças que fomos do fundo de nossas lembranças e aproveitar o convívio com aquelas que nos cercam, com lógica  e sentido próprios que surpreendem a nossa razão e despertam meninos e meninas em nós.
     Em homenagem ao Dia das Crianças, rememoro passagens engraçadas e poéticas protagonizadas por meus filhos quando bem pequenos. Em poucos anos eles deixarão a infância e certamente gostarão de saber um pouco do que pensavam, se divertindo e se emocionando.  Por isso, enumero algumas de suas historietas, quase anedotas, em forma de pílulas escritas. É a minha maneira de encapsular e ingerir o que a infância tem de melhor.

*** Quase, quase adolescente ***

Com cinco anos e meio a menos que sua extrovertida prima, minha filha sempre viu nela um referencial. Chegaram a brincar juntas de boneca. Mas com as transformações no corpo e no comportamento de Luíza, as brincadeiras escassearam. Até Juju estranhar e perguntar, aos cinco anos:
        - Mamãe, o que é mesmo ser adolescente? A Luíza já é?!
     Respondi que, aos 10 anos, ela era uma pré-adolescente e que depois entraria na adolescência, que é o período em que a criança vai, aos poucos, se transformando em adulto, o que terminava por volta dos 18 anos.  Júlia ouviu com atenção e balbuciou um “ah, tá...”. Meses depois me perguntou do nada:
        - Mãe, eu sou pré-pré?
         Não entendi e quis saber “como assim?!!!”.
        - Eu quero saber se eu já sou uma pré-pré-adolescente?!!!
         Definitivamente, ela era...

*** Duas figurinhas ***

Gabriel tinha quatro anos e ainda continuava a falar no fofo ‘bebezês’ que nós pais até corrigimos mas adoramos ouvir. Em um dia, inspiradíssimo, misturou tantos “Se eu sesse”, “Quando eu tinha fazido”, “A aula de psicomocicidade” que eu lhe falei
- Filho, você não existe...
Gabriel, que estava aprendendo sobre folclore brasileiro e seus personagens na pré-escola, questionou-me sério:
- Ué, mamãe, quer dizer que eu sou uma lenda...?!!
Quando ia explicar, sua irmã esclareceu por mim:
- Não,Biel!!! Quer dizer que você é uma figura!!! Mas não é dessas de colar em álbum que a gente coleciona não, viu?!!! Você é uma figura rara, dessas que a gente não acha nunca...

*** Abre-te Sésamo ***

Com ares de independência, aos 5 anos de idade, minha filha comunicou-me radiante:
- Mamãe, já terminei de fazer o trabalhinho de casa!
- Que bom, filha! Então guarde-o na pasta da escola, tá?
Sentada em sua cama, arrumando outras coisas, notei que ela travava um verdadeiro embate com a pasta sem conseguir abri-la, já nervosa, suando e emitindo grunhidos do tipo ai, ui, aanhh.... Foi quando intercedi:
- Júlia, você tem que puxar com jeitinho o fecho ‘eclair’...
Em sua lógica de criança, ela reagiu indignada:
- Mas ele não abre, mamãe!!! Só fecha...  Aliás, tinha que se chamar Abre éclair!!!

*** A melhor opção ***

Depois de mais um de seus pitis ensandecidos por nada, meu filho levou uma bronca de mim e me ameaçou, dando início ao seguinte diálogo:
- Se você brigar comigo de novo, eu vou chorar!
- Pode chorar, que não ligo. Se você faz coisa feia, mamãe tem que brigar...
Então, se você brigar comigo, eu vou gritar feito ma-lu-co!
- Aí eu vou ficar triste e aborrecida e te deixar de castigo, sem brincar de carrinhos...
Então eu vou me soltar da cadeirinha e fugir pra rua!!!
- Nunca faça isso, filho!!! Alguém malvado pode te pegar e te levar para bem longe e você nunca mais vai ver a mamãe, o papai e sua irmã!
Gabriel emudeceu um minuto, como se pesasse a situação, para voltar à primeira opção:
- Se você brigar comigo, então eu vou só chorar...   
  
*** Sonhando acordada ***

Um belo dia, com cinco anos, Júlia passou a adotar precocemente um hábito típico dos adolescentes: fechar a porta de seu quarto. Sem pedir licença, pois achava que crianças pequenas não deviam ficar trancadas, entrei para saber o que estava fazendo e a flagrei deitada na cama maravilhada, olhando pro teto e rindo. Como se visse algo secreto e surpreendente, talvez arco-íris, duendes, sabe-se l...
     - O que foi Juju? Tá pensando em quê?, perguntei.
     - Estou só sonhando, mamãe...
     - Ué, sonhando sem dormir?!!
     - É que eu gosto de sonhar acordada...
     Deixei-a em seus sonhos, mas com a porta aberta, pois achava que criança com aquela idade não devia ficar trancada. Dali por diante passou a ser costume encontrá-la no quarto com a porta fechada e, ao abrí-la, surpreendê-la andando de um lado a outro, sentada ou mesmo parada em pé com ar contemplativo. A resposta era sempre a mesma:
- Tô sonhando, mamãe...
     Enquanto isso, aumentava enormemente a sua criatividade. Já alfabetizada, escrevia e ilustrava as próprias histórias, fazia dobraduras e outras invenções mirabolantes e muito coloridas. Engraçado era que produzia suas artes com a porta de seu quarto aberta. Se esta estivesse fechada, eu já sabia: “Ela está pensando!”. Mesmo assim, sempre abria a porta. Até ela esbravejar:
- Pôxa, mamãe, assim você acaba com o meu laboratório!!!
Disse-lhe que não tinha entendido...
- O meu laboratório de sonhos, oras!!! Meu quarto é o meu laboratório de sonhos!!!
Depois disso, passei a respeitar a privacidade de minha pequena cientista e artista-mirim. Para que ela fizesse muitas experiências em seus invisíveis tubos de ensaios, misturando lindos sonhos para ver em que iria dar a realidade...

*** Para sempre criança ***

Assim como a irmã – e suponho a maioria das crianças -, meu filho teve, aos 8 anos, sua fase de temor em virar adulto. Com nostalgia antecipada, choramingava que queria brincar e ser pequeno para sempre, tal qual Peter Pan e os meninos da Terra do Nunca. Pragmático, constatou e decidiu um dia:
- É muito ruim ser adulto! Tem que trabalhar, pagar contas, ir ao supermercado, cuidar das crianças, resolver as coisas da casa... Eu não quero casar! Quero morar com vocês para sempre...
Já aos nove anos e pelo menos dez centímetros maior, quando deitava em sua cama à noite, me perguntou como e quando as crianças cresciam, já que ele não conseguia perceber. Simplesmente notava que suas pernas e braços se alongaram e que seu corpo já era quase do tamanho da sua cama.
Expliquei-lhe que isso acontecia de forma imperceptível, todos os dias, mas que os médicos dizem que o nosso crescimento – tanto dos ossos como dos músculos – é maior durante o sono, porque fazemos repouso absoluto.
- Mamãe, eu tenho medo de um dia dormir e acordar adulto!
Tranquilizei Gabriel que isso não aconteceria de um dia para o outro, mas sim aos pouquinhos e que ele teria muitos anos para aproveitar como criança. Fiquei ali, deitada a seu lado, sentindo sua inquietude adormecer e agradecendo pelo tanto que ainda assistiria a sua infância despertar. 
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Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Somos personagens de nossos destinos

     


    Vejo a vida como um misterioso roteiro que um autor constrói de acordo com seus personagens. Dependendo dos rumos de suas histórias, os papéis seguem ou não o script inicial. A morte do ator Domingos Montagner, tragado por um redemoinho no Rio São Francisco ao filmar uma cena de novela, me fez pensar no quanto a vida tem de imprevisível. Acredito que possuímos mais do que um destino e que somos personagens de uma trama maior, já quase toda pronta, mas com capítulos e desfechos em aberto.

     Todos os dias pessoas não mais acordam ou viram a esquina sem saber que não voltarão a suas casas e famílias, suas anônimas histórias. Um mergulho, um terremoto, um assalto... Tudo pode acabar em segundos, a realidade parecer ficção e a morte, abrupta, se assemelhar a carma. Nessas horas, não há tempo para despedidas e declarações, mas certamente sobra para saudade e arrependimentos. O que não foi feito e dito e poderia ter sido. O que foi dito e feito, mas não deveria. 

     As fatalidades mostram como a vida é fugaz e não podemos perder tempo com besteiras. Viver é um risco que temos que saber correr, entre o imponderável do acaso ou do destino e o que aprendemos com as consequências de nossas decisões e fatos alheios que nos afetam.  Creio que os principais acontecimentos de nossas vidas ocorrem porque são necessários, assim como encontramos pessoas que de alguma forma precisamos. Creio que viver é parte de um processo de evolução espiritual.

     Algumas vezes parecemos estar na hora e no lugar certos ou na hora e no lugar errados. Mas se retrocedermos nossos passos no relógio, vemos como de forma surpreendente os apressamos numa direção ou os atrasamos até prosseguir noutra. Assim acontece com aquele passageiro que desiste de um voo no avião que caí. Ou com um casal se conhecendo quando tudo os levaria a desencontros. É como algo nos impulsionasse para destinos diferentes daqueles que pareciam nos esperar.

     Costumo pensar que nossos poucos (talvez dois ou três) destinos são bifurcações de estradas, que escolhemos seguir. Com mais ou menos curvas e atalhos. Tempestades alagam a pista para nos fazer derrapar e nos atemorizar.  Uma pane elétrica nos detêm no acostamento atrasando a viagem. Tudo afetará a maneira como iremos rumo a nossos destinos. A maior parte deles, para o bem ou o mal, está traçada, mas alguns podem ser alterados por nosso livre arbítrio.

     Toda a sorte (ou azar) de problemas acontece no percurso.  É raro nos mantermos seguros, sabendo de cor o mapa de nossos desejos e metas. Perdidos, podemos usar o GPS de experiências e intuições ou sair a esmo, por pura adrenalina. Podemos até retroceder para retomar um rumo que ficou para trás. O destino surgirá em um trecho da estrada, como uma das opções em aberto do nosso roteiro ou a do script original. Ainda que pareça sem sentido, estará cheio de significados.

 


Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay

domingo, 11 de setembro de 2016

Sofrer pode nos fazer evoluir


Sofrimento ao extremo vira desespero e este, sem tratamento, cega para o futuro e suas imensas possibilidades. Nada parece ter solução, a vida perde o sentido e a única saída parece ser a morte. Uma recente tragédia no Rio de Janeiro, com uma família aparentemente feliz, serve de alerta para que a gente cuide da nossa sanidade e entenda que sofrer pode nos fazer evoluir, se houver fé.

Em um apartamento de classe média alta, dois lindos meninos e sua mãe foram assassinados por quem mais deveria defendê-las: seu pai e marido, que se suicidou a seguir. Em uma carta, o homem narrou dificuldades profissionais e financeiras que não lhe permitiriam manter o mesmo padrão de vida. Lamentou ter “falhado” e explicou que sua decisão era para “evitar o sofrimento de todos”, como se o seu ato de desequilíbrio fosse por amor e proteção.

Quem disse que aquelas pessoas inocentes, surpreendidas pela loucura alheia sem chances de reagir, queriam ser poupadas de sofrimento? Quem disse que vender um apartamento para comprar outro menor, trocar de escola, de carro ou as marcas preferidas no supermercado lhes faria sofrer? Mudar de vida, encarar perdas e deixar de repetir condutas viciadas pelo hábito podem, ao contrário, resgatar o amor próprio e unir uma família.

Seres humanos estão enlouquecendo, ao se esquivarem de seus problemas, se isolarem e mentirem para si mesmos ou aos que dizem amar, no afã de serem bem sucedidos e autossuficientes. Padrões sociais ditam o que é ser feliz - sinônimo de sucesso no amor, no trabalho, nas redes sociais... O número de sorrisos, promoções, curtidas é o que conta e foge-se dos problemas com válvulas de escape. No travesseiro, percebe-se: a felicidade é mera ilusão.

A lealdade e a honestidade (não apenas moral, mas com os próprios sentimentos) estão em baixa. Pessoas convivem por anos e décadas, acreditando que partilham afeto, sonhos e confiança. De repente, são apunhaladas covardemente... Como a esposa dormindo ao lado quem decidiu matá-la ao invés de procurar saídas para sua crise. Por que não buscar o diálogo que lhe aliviasse o coração e lhe fizesse ver uma luz no fim do seu escuro túnel? Seu atormentado espírito preferiu um caminho sem volta e mais sofrimento. 

A vida é intercalada por crises – financeiras, vocacionais, existenciais, matrimoniais - que detonam questionamentos com os quais podemos achar respostas, fazer escolhas para viver bem o presente ou planejar um futuro melhor. Não à toa o ideograma da palavra crise em japonês e chinês representa, ao mesmo tempo, perigo e oportunidade. Toda a crise pode nos ensinar algo: fé, coragem, equilíbrio e inovar.

Nas horas difíceis é que fortalecemos o nosso espírito. A gente amadurece na adversidade, ao encarar a verdade e o sofrimento, por mais cruéis que sejam. Todos carregamos dores, físicas ou psíquicas, em intensidades e formas diversas, às vezes imperceptíveis para quem pensa nos conhecer a fundo. Uns se entregam, vão ao fundo do poço, mas voltam à superfície quando estão sem ar. Muitos se asfixiam...

Embora o sofrimento não seja comparável, já que é único para cada um que o vivencia, há que se pensar nas milhões de pessoas com sobrecargas de martírio corporal e espiritual mundo afora, como se carregassem pesadas cruzes nas costas. E as suportam, com força e certeza em tempos melhores. Para estes, resilientes por natureza ou aprendizado, quanto mais a vida testa, mais a fé pulsa no peito. 

Sofrer provoca dor, incredulidade, revolta e catarse. Mas se há fé para superar essas fases, um dia chega-se à aceitação, à purificação e à transformação. Enfrentar o que chega para nós, compreendendo nossas emoções, nos fortalece e nos transfere do papel de vítimas a agentes de uma nova história - árdua, mas verdadeira.   

 


Texto: Nadja Bereicoa
Imagens: Pixabay

domingo, 5 de junho de 2016

Expatriate hearts

New changes are coming in my life and I’m definitely sensible. My eyes got wet rereading a lovely card received from an international new friends, at an unforgettable lunch two weeks ago. On behalf of the group, the extrovert and leader Tomoko gave me traditional Japanese gifts and special words that I will take with me forever. “You will be a piece of our expatriate hearts”, she wrote at the end. This was the inspiration to this first chronicle that I publish in English, a kind of an open letter.
     Actually, it´s my farewell.  I´m going back to Brazil in a few days, after long seventeen months living in a calm and beautiful Katy, Texas, at the border of Houston. Both are cosmopolitan cities where the increase in offshore jobs have brought companies and people from around the world. The English as a Second Language (ESL) course *, where we met each other, shows how the Earth can be magically big and small. Our advanced level class was able to join students from at least 18 countries. I had there one of the most fantastic experiences in my life.
     In common we have typical expatriate hearts: opened, strong and healed, looking for knowledge. It doesn´t matter that some were closed, week and have bled so much in a recent past, missing people and places that love but are so distant… Each one of us had different problems, sufferings and fears, such as various dreams. Like plants, all of us feel rootless, but gradually (as ourselves gardeners) we revolve the new land to fertilize the life again. So we turn to grow up and learn to overcome everything.
     Slowly or faster, during in general one semester, the adaptation abroad is never easy and has so many steps as you need or want to climb, for destine or choice. I deeply lived each one that I took, sometimes forcing myself to face them. Being honest, in the beginning I almost got a depression because my loved father passed away exactly one week after my arrival here. Although I already expected it, my sadness and the feeling of lost were enormous. I only wanted to be alone or with my husband and our kids.
     My loneliness echoed in our huge and empty new house. It was important because made me write more to understand what I was feeling and intended to do about it. I preferred to leave memories written, while I was transforming that place in a home, the cold or sad moments in warm and happy ones. As in a popular saying, nothing like a day after another. Seven months after having left Brazil, I created a blog called, not for coincidence, In Another Connection and I also started the English classes.
     The life is incredible because suddenly it can surprise us. It´s only necessary to leave the experiences and differences enter. An expatriate life is one of the best ways to be a better person, with less prejudice and more acceptance of others and who we really are. So far from my place, I met kind and different people: American, foreign and Brazilian.   I could improve my English, being so thankful to our nice and smiling teacher Teresa, but I especially learned about diversity of the planet and similarities between us: words, habits, foods, impressions and also feelings...
     When I thought my adaptation was concluded and my life organized, another cycle arrived to restart everything. Now my husband´s job can be done from our home town, Rio de Janeiro. We are disassembling a house and redoing plans… and soon the moving company will take our things! I already miss what I lived in Texas, but I´m happy to go back, although my country lives a turbulent but historical and democratic moment, when cases of corruption have been discovered and punished. I´m hopeful this is a cleaning to develop a strong nation, where I see the future of my children. Even this, I know we will feel as homeless again. Our furniture will be shipped by the ocean, while we will stay in a flat, full of expectations.  
     Goodbye, girls! I wish the best for you. Anywhere, a lot of days born sunny and clear, but others start rainy and cloudy. Each one can have their value, if we expect growth or happiness with what we lose or get. Each one can change unexpectedly, by weather conditions or due to our vision, behavior and faith. The world can be in our hands. Sometimes it looks like the time is only passing by, through us, but in special moments or for periods we feel really alive, crossing the time and removing the most important of it. An expatriate experience is like this as well. Beyond our passports, it stamps a piece of our hearts and souls forever.



Text:Nadja Bereicoa
Images:Nadja Bereicoa (2) and Pixabay (1 and 3)




* Observation:
I´d like to highlight my appreciation to the amazing initiative of the Katy ISD (Independent School District) in offering the ESL (English as a Second Language) free courses to foreigners parents, demonstrating how open and warm the city and its people are.  The second picture shows the entrance of Alexander Roosevelt Elementary School, during an International Week. I´m also thankful to the teachers and staff from this excellent school, where my kids studied and became bilingual due to the same course and the effort of the involved
.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Para minha mãe

















É época de celebrar sua vida
no milagre de se perpetuar
em cada firme ensinamento
e em cada doce momento.

Época de acariciar a ferida
de sentir a saudade latejar
e me trazer de volta você
orando, ralhando, cuidando...

Época de sorrir e de chorar
com o ocaso de tantos anos,
vendo como a sua luta valeu:
nada foi, é ou será por acaso.

Se não houve tempo de me dizer muito,
bastou-me seu amor imenso e mudo
que precisou renunciar ao mundo.

Se me diferencio na trilha que traço,
é em essência que a ti me assemelho,
meu primeiro e inesquecível espelho.

E se não tenho mais o seu abraço,
a sua presença até o fim pulsará
dentro de mim, meu eterno regaço.


Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Aparecida Farias

sábado, 23 de abril de 2016

Semente de inspiração




   Escrever é no chão seco ver semente,
brotando sob a forma de inspiração.
É como uma outra vital respiração, 
sem a qual mal se consegue viver.

Escrever é tratar as antigas escaras,
 soltar o que ficou preso sem querer.
É, com calma e precisão, fazer aparas,
para ir ao cerne do que se quis dizer.

Escrever é dissipar sombras da alma,
com palavras que jorram sem parar.
É sentir doer fundo, mas se acariciar,
criar coragem e deixar tudo cicatrizar.

Escrever é deter o tempo que não existe
 em uma emoção, em um momento. 
É entender o que terminou mas insiste.
É buscar, descobrir, continuar sem saber.

Escrever é pra quem não quer se esquecer.



Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Júlia Bereicoa



segunda-feira, 11 de abril de 2016

Entre o fechar e abrir das cortinas

     
Cai o pano. Não poderia ter tido melhor título o derradeiro episódio da série Pé na cova, que há dias exibiu as últimas imagens da falecida Marília Pera, uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos. Vê-la brilhando na TV, inteira e intensa, me fez refletir sobre a força sobrenatural que algumas pessoas possuem para superar a dor que dilacera o corpo e a alma, em prol de um propósito. Sofrendo de um câncer devastador e terminal, essa magistral atriz e mulher – ainda maior por isso – não se entregou até o fim. Gravou todas as suas participações no programa e partiu logo após cumprida essa missão.
     A morte da atriz surpreendeu a todos. Doente há três anos, ela escondeu seu problema do público e até dos colegas de elenco, despistando notícias vazadas à Imprensa. Unicamente com a família, dividiu o seu fim. Em uma entrevista, Miguel Falabella, autor e protagonista, declarou ter vivido momentos lindos mas tristes contracenando com ela, em um adeus não pronunciado. Em respeito à companheira de cena, nunca abordou a doença. “Ela sabia que eu sabia e a gente mentia um para o outro”, disse.  Com um pacto tácito de silêncio na vida real, eles protagonizaram na tela diálogos sensíveis sobre a finitude, como Darlene e Ruço, a maquiadora de cadáveres e o dono da funerária, um ex-casal que sempre se amou.
     Somente neste ano, para me despedir da atriz, passei a acompanhar a controvertida série, que tratava a morte de forma desmistificada, com um humor ora bizarro ora nonsense que desconstruía tudo e todos que giravam em torno da agência funerária, polo central da trama passada no subúrbio carioca do Irajá. Personagens esdrúxulos quebravam os critérios da sanidade e flutuavam entre a morbidez e a vida,  a dureza e a poesia, o surrealismo e a realidade. Talvez pelo desconforto de estar vivenciando mortes doídas, não me interessei antes pelo caos que misturava com caricatura e ingenuidade, em meio a caixões, defuntos, esquizofrênicos, impostores, alcoólatras, gays, prostitutas...
     Em tempo me abri para a inovadora narrativa de Falabella. Vi que seus personagens inverossímeis e, simultaneamente, possíveis falavam de forma anárquica, quase subconsciente, sem ligar para tabus, o que muitos não têm coragem de assumir a vida inteira. Confessavam suas opções de vida, suas fraquezas, seus fracassos, até seus desvios de caráter, e assim eram felizes. Como todos podem ser, cada qual a seu modo, seja como for - se preciso rompendo padrões, mas sendo autênticos e perseguindo sonhos mesmo que irreais. Ainda que a morte esteja à espreita, iminente, certa, por vezes debochada.
     Por uma infeliz ironia, Marília Pera acabou se transformando numa personagem extra de Pé na Cova. Detrás da cena, ela nos ensinou como encarar de frente a morte, sem desistir de cumprir uma missão em vida para seguir a sua nova jornada. Omitiu suas dores e sua tristeza porque sabia que precisava terminar um ciclo, seu último ato, e deixar serena e lentamente cair o pano da vida.  Miguel Falabella, a quem passei a admirar especialmente como dramaturgo, rendeu-lhe uma merecida homenagem nesses meses, com cenas bonitas, engraçadas ou melancólicas, que misturavam o passado ao presente e mostravam que, lá no fundo, continuamos os mesmos.
     “O segredo da vida é a gente fingir que não está com medo, é a gente fingir que não está sofrendo”. O Ruço de Miguel disse essa frase à Darlene de Marília, parecendo que a esta se dirigia. Como em várias outras filosofias de botequim da série, ecoou ali uma grande verdade: não devemos alardear as nossas fragilidades, o quanto estamos assustados ou dilacerados, em busca de ajuda ou comiseração. Esse fingimento do bem - que não machuca a ninguém, sem trapaças – pode ser necessário para nos proteger, nos fortalecer e nos permitir seguir. Foi o que fez Marília atuar até o final, dignamente e em meio a aplausos.
     Devemos entender e aceitar quando as cortinas estão a se fechar, pela proximidade das várias cruciais mortes que nos cercam, reais ou simbólicas. Nesses momentos, o que mais precisamos é de fé e sabedoria para decidirmos entre ficar, nos prolongar mais um pouco ou partir. Poderemos então nos despedir sem sucumbir. E acreditar que outras cortinas se abrirão. 
  

Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay

segunda-feira, 28 de março de 2016

O simbolismo da Páscoa


Das celebrações religiosas, a Páscoa é, para mim, a de maior sentido de purificação e renovação. Considero-me uma cristã não dogmática, educada nas bases do catolicismo e atenta à doutrina espírita. Acredito em Jesus e seu calvário, mas penso que não devemos cultivar martírios, culpas e penitências.  A ressurreição ou a vida de nossas almas após a morte são mistérios em que podemos crer ou não. Teologia à parte, o simbolismo da Páscoa inspira reflexão.

Páscoa em hebraico significa passagem, algo que fazemos cotidianamente mesmo sem perceber. Nossos renascimentos se dão a partir de rupturas, desfechos e ciclos que vivemos. Estamos sempre passando entre estados de espíritos, lugares, pessoas, momentos... Como partículas que se agregam ou se afastam, o tempo se condensa eterno ou evapora efêmero em nós, que decidimos o que dele iremos filtrar e guardar.

Esta Páscoa teve um sentido especial de vida para mim, já que na anterior vivi o luto pela passagem de meu pai. Agora percebo meus filhos crescendo, consolidando suas personalidades e se despedindo da infância. Os rastros dela ainda se espalham pelos quartos, nos brinquedos e jogos preferidos aguardando o desapego. As covinhas em suas mãos estão sumindo, seus frágeis corpos prenunciam a puberdade, suas vozes oscilam timbres e dúvidas. Logo trilharão seus outros caminhos, na passagem pela adolescência.

Comemoro suas mudanças psicológicas – os dentes ainda em troca, já sem esperarem sob os travesseiros por fadas -, aproveitando seus momentos de inocência e desejando que perdurem. Nesta Páscoa, me pediram explicações religiosas e que eu escondesse ovinhos de plástico com chocolates pela casa. Aos poucos eles seguem descobrindo a realidade - as doces mentiras e as amargas verdades. Enquanto os oriento para que se protejam de perigos e saibam encarar o medo (pois nisso reside a coragem), lhes ensino a mergulhar nos sonhos. Como os dos livros que lemos juntos.

Crescer, literalmente, dói. Meus filhos têm reclamado, como eu fazia à minha mãe, que sentem dores nas pernas. Como ela, lhes digo que é dor de crescimento dos ossos, que se alongam. Ainda não lhes contei o que aprendi sozinha: que a alma fica bem mais dolorida quando se é adulto. Estica, esgarça, com tantos sentimentos. Quando eles me dizem em sua nostalgia infantil que preferiam continuar crianças – tal Peter Pan e os meninos da Terra do Nunca -, eu enalteço a passagem do tempo como um milagre e motivo de conquistas, mas torço para que levem com eles o melhor da infância.

Por eles terem crescido vários centímetros, pudemos há dias vivenciar uma inédita aventura radical: despencar das montanhas-russas da Disney. Com tremor nas pernas e o coração disparando, acompanhá-los junto com o pai em quedas de mais de trinta metros e loopings. Quando pensava em desistir, respirava fundo, fechava os olhos, segurava nas mãos deles e ia... Minutos de adrenalina e diversão, repetidos seis vezes, nos proporcionaram lembranças que ficarão para sempre, como uma endorfina de felicidade. Fiquei orgulhosa de conseguir dominar meu medo, passar por ele, e me permitir viver isso ao lado de meus filhos.

Continuaria falando sobre a infância e os momentos de alegria fugazes que se tornam perenes. Mas a tristeza alterou o rumo destas linhas. Quando terminava esta crônica ontem, ouvi a notícia sobre mais um ataque terrorista, dessa vez no Paquistão, com 72 vítimas fatais e centenas de feridos, dentre elas dezenas de crianças e adolescentes. Eram famílias que celebravam a Páscoa justamente num parque de diversão e foram destruídas pelo sofrimento. Nesse cruel paradoxo, tudo parece perder o sentido...

O domingo sangrento aumentou a importância de ressignificar a Páscoa e a vida. Diante do ódio e da intolerância, a importância do amor e do respeito às diferenças sobressai ainda mais. Podemos nos chocar e chorar, mas com fé e esperança para seguir. Somos o resultado de nossas experiências e emoções e isto deve incluir não desistir de acreditar, apesar das provações e de toda a dor.  Senão, morremos em vida, sem chance de renascer.

    

Texto: Nadja Bereicoa

Foto: Pixabay



quinta-feira, 24 de março de 2016

Plenitude



Este poema é um dos vários que fiz para o meu grande amor, melhor amigo e pai dos meus filhos. Depois de mim, ele é quem mais me entende ou, quando não, ao menos tenta com afinco.
Sereno, romântico e generoso como um genuíno pisciano, ele acaba de iniciar uma nova década de vida. Minha homenagem é por isso e por compartilharmos a plenitude de um sentimento que se fortalece quanto mais amadurecemos.


Não te vejo como minha metade
porque nos quero inteiros ou quase,
diferentes e no fundo os mesmos -
virtudes e defeitos em doses certas.

Vejo-nos parceiros de jornada
a fazer do amor doce empreitada,
aliança, conquista, dança, pacto.
soma de acertos e descobertas.

Vejo-te como porto onde atraco,
o ombro que alivia o cansaço,
a palavra dura na hora do erro,
o carinho que cura o desespero.

Vejo-te como surpresa sempre boa,
o abraço forte ao chegar em casa,
a gargalhada gostosa à toa,
o beijo na boca apaixonado.

Vejo-nos dois corpos e almas únicos,
ora unidos feito átomos no espaço,
ora caminhando lado a lado rumo ao futuro,
onde plantamos nossos dois melhores pedaços.

Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Nadja Bereicoa





terça-feira, 8 de março de 2016

Anjo travesso

   Era um 6 de março quando recebi nos braços o meu anjo Gabriel, surpresa abençoada do céu que virou sorridente realidade há nove anos. Desde pequeno, ele me ensina a ver tudo pelo lado positivo e simples. Como sempre diz,"a vida é assim...
    Meu amor eterno, continue voando sem medo para um lindo futuro, fazendo da infância seu espaço sideral! Que a sua felicidade seja infinita como o universo!


Quando achei que ele não viria,
Deus o enviou, meu sonho bom,
com o dom do amor e da alegria.

Gabriel, o meu anjo serelepe,
que vira tudo pelo lado avesso,
sobe, desce, abre, pula, mexe.

Meu moleque puro e travesso,
que perde o prumo e não a meta,
sorrindo sempre com brilho celestial.

Como se no rabo de um cometa,
voa sem medo para um lindo futuro,
fazendo da infância seu espaço sideral.

Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Pixabay



terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Ao doce sabor dos ventos e desejos

Uma solitária e inusitada flor dente-de-leão, rente à calçada, na beira do meu caminho num domingo, me fez agachar por instantes para apreciá-la, tão delicadamente instigante. Pareceu-me um chumaço ralo de algodão - frágil, não propriamente bela e talvez prestes a morrer, pensei... Nunca a  tinha visto. Meus filhos, porém, a conheciam e, entusiasmados, me informaram o seu principal significado: sorte.
   Falaram-me que eu deveria soprá-la fazendo um pedido, para que suas sementes se espalhassem pelo ar e o meu desejo se realizasse. Sem saber sobre suas lendas, não quis destruí-la. Preferi que um vento leve, que soprava bem naquela hora, se encarregasse desse trabalho de forma sutil e desinteressada. Então, observando a flor se desfazer, percebi como a natureza se ajudava e se recriava sozinha. E segui especialmente feliz.
   Mais tarde, ao pesquisar sobre essa exótica flor, descobri fascinada o sentido máximo de renovação e esperança que ela carrega quando, aos pedaços, voa sem saber aonde vai parar, com a feliz certeza de brotar de novo, em um eterno ciclo. Em pleno auge, suas pétalas amarelas com recortes pontiagudos lembram a juba e os dentes de um poderoso leão. Mas sua exuberância, como ocorre conosco, não dura para sempre. Ela se fragiliza, fica apenas com suas sementes que mais parecem espinhos, mas, com vontade de viver, renasce onde cai. Nisso reside a sua força.
    Nós também, ao longo da vida, sentimos as nossas pétalas irem embora, seja pelo curso normal e muitas vezes nada fértil dos dias, seja pelos ventos e intempéries do destino ou porque algumas pessoas as arrancam, nos ferindo. Perdemos o viço, as cores e a energia, sentindo-nos podados em nosso crescimento espiritual, com a apatia e a depressão que nos acometem até sem explicação ou com a deslealdade e a crueldade alheias despejadas em nós.
   De uma hora para outra nos vemos secos, desfazendo-nos como fios ásperos de algodão, sobre nossos caules ainda que enraizados em terra produtiva. Parecemos ervas daninhas crescendo desajeitadas na concretude e aridez dos fatos, quando na verdade estamos apenas sensíveis e desnudados, feito uma frágil e ambígua flor dente-de-leão – rica em propriedades medicinais e místicas e tão desprezada, desapercebida. Mas, como ela, sempre teremos a chance de renascer, se cultivarmos em nós a imagem do que foi esplendor.
    Depurando os mais íntimos sentimentos, escolhendo aquilo e aqueles que nos fazem bem ao soprar as nossas pétalas com delicadeza e as melhores intenções e, principalmente, disseminando nossas essências, voltaremos a espalhar e germinar nossas sementes. Mesmo com nossas incompletudes e em solos ariscos, poderemos nos replantar e reviver, em qualquer terreno. Como às margens das calçadas dos nossos triviais caminhos.
    Da mesma forma que essa mágica e livre flor, que nos deixemos levar ao doce sabor dos ventos e das energias positivas sopradas pelos bons desejos. E que saibamos florescer no tempo certo, até quando parecer improvável ou impossível.


Texto: Nadja Bereicoa
Imagens: Nadja Bereicoa (1)
                Pixabay (2 e 3)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Caleidoscópios vivos

Quem somos de fato?! Tímidos ou extrovertidos? Medrosos ou destemidos?  Racionais ou emotivos? Perdemos tempo nos definindo, sem entender que somos belos caleidoscópios, em inúmeras formas e cores.  Com os reflexos de nossa alma e de nossa história e as lapidações em nossa personalidade, podemos revelar ângulos antes impossíveis, entendendo que a vida é curta para tracejados lineares e em preto e branco.

Precisamos perceber quando metamorfoses se anunciam: novas características se revelam e outras se diluem ou se mesclam, em círculos que se abrem, se fecham ou são concêntricos.  É assim que surgem histórias nada críveis: o hippie da faculdade se transforma num rico empresário da informática, enquanto a executiva bem-sucedida resolve viver de agricultura orgânica. A garota popular da escola vira uma intelectual respeitada e a nerd tímida se torna atriz famosa. A explicação para o que nos tornarmos está, além de no mistério, na vontade.   

A vida também é lúdico caleidoscópio, com desenhos às vezes abstratos escondidos nos dias. A mais corriqueira paisagem revela o que passaria despercebido, mas um detido olhar vê.  De repente um rosto se forma entre as nuvens e duas nesgas de céu nele parecem nos fitar como olhos.  Ou um tapete de folhas de vários recortes e tons – verdes, amarelas e vermelhas – derramadas sobre a calçada, nos faz caminhar levitando. Há beleza e sinais em tudo...

Não devemos ficar presos ao que enxergamos à frente do nariz e a estereótipos sobre os outros e nós ou nos obrigarmos a ser sempre alegres, dispostos, sociáveis ou o que quer que seja. Nossos sentimentos são livres. Nossa aura pode estar monocromática e nosso olhar introspectivo em pleno dia de sol no verão, mas despontarmos coloridos e brilhantes numa noite fria e chuvosa de inverno.

Ninguém é totalmente bom e centrado. Embora as índoles de cada um predominem, temos ambivalências. Um rompante de raiva quando tudo dá errado, um desejo de dar o troco a quem nos prejudica ou outro lado sombrio tiram do eixo até quem tem essência boa. Somos movidos não somente pela razão, mas também por impulsos e instintos. São as reflexões sobre nossas multiplicidades que nos aprimoram. Nossos fragmentos de sentimentos, experiências e possibilidades nos tornam mosaicos. 

Somos caleidoscópios, em constante transformação. Só precisamos da lente certa no olhar para apreciarmos todas as nossas surpreendentes e belas formas. 


Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay
       

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Vestindo a fantasia



     Brincar de ser outra pessoa ou quem no fundo se é, mas não se tem coragem de mostrar. Reinventamos a alegria para celebrar a vida por quatro dias, como se não houvesse amanhã, em meio a confetes, lantejoulas e serpentinas.   Carnaval é alegria e explosão de cores, mas também libertação e ritual de passagem ao que virá de difícil e imprevisível.  Na quarta-feira de cinzas, quando acordamos como de um sonho ou de um pesadelo. 
     Na multidão anônima nos bailes, blocos e desfiles de samba e outros ritmos Brasil afora, gente que espera o ano inteiro - economizando dinheiro e sentimentos - para comemorar conquistas, extravasar frustrações, delirar com o luxo ou se render aos prazeres da carne. Sob máscaras, paetês e purpurinas, as dores se escondem, a pobreza é camuflada, os amores vão e vem. Todos são tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais em sua capacidade de depuração e transformação.           
     O Carnaval é o abre-alas do ano para os brasileiros. Depois de Natal, réveillon e férias, tudo de fato começa quando termina a folia. É hora de botar o carro alegórico na rua e reiniciar  a luta diária pela sobrevivência num país onde o povo tem sido feito de palhaço, no pior dos sentidos. Nosso gingado é diário, traduzido no bom-humor e improviso com que enfrentamos tantas situações adversas.  Nosso jeito de ser é carnavalesco: fazemos tempestade em copo d´água, choramos à toa, douramos a pílula, rodamos a baiana e achamos que recordar é viver.
     Todos temos lembranças de outros carnavais. Matinês inocentes, os primeiros blocos, beijos no salão, um porre homérico... Até a mais absoluta solidão, quando tudo ao redor fervilhava em barulho, êxtase e aglomeração, pode ter tornado um carnaval inesquecível.  Mesmo quando optamos pelo recolhimento é difícil manter-se alheio aos dias de Momo, sem uma espiadela na TV ou nas ruas. Afinal a maior festa popular do mundo é um orgulho nacional, que prova a criatividade, o empreendedorismo e o poder dos brasileiros.
     Nunca fui foliã de primeira, mas ansiava pelos bailinhos quando criança. Segurava avidamente meu saquinho de filó com confetes, que eu jogava ao ritmo de “Allah, meu bom Allah!" e antigas marchinhas. Fui cigana, baiana, marinheira e me fascinava em saber que todos podiam ser quem quisessem naqueles dias. Mais crescida, assistia aos desfiles na TV até o sol raiar ao lado de minha mãe, que gostava de contar como meu pai a cortejava nos bailes em que os rapazes borrifavam inocentes lança-perfumes nas moças. Tempos de Pierrôs, Colombinas e Arlequins.
     O carnaval mudou muito de lá para cá, às vezes desafinando para exibicionismo e excessos, ressacas e arrependimentos. Mas a essência da festa, de celebração da vida, deveria estar presente sempre. Bom seria salpicar sobre os dias um pouco da euforia, da cor e do brilho concentrados num único período do calendário.  Deveríamos nos permitir carnavalizar  mais nossas vidas, com menos culpas e privações. 
     Alegria coletiva confraterniza e revigora. Melhor ainda é quando esse sentimento vem de dentro da gente, sem data marcada, nos fazendo rir e rodopiar sem motivo, até sozinhos. Simplesmente por entendermos que a vida tem sim altos e baixos, sucessos e fracassos, movimentos e quietudes, ensaios e sustos, mas pode ser um enredo (re)criado por nós. Com mais fantasia, beleza e apoteoses. 




Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay