domingo, 10 de janeiro de 2016

Sobre minha mãe e sua partida


    Era um 5 de janeiro de sol, em 2013, quando minha mãe faleceu sob o chuveiro, deixando muita saudade por sua partida inusitada mas serena, que a poupou de dores. Como digo em um poema, "naquele calor intenso de verão, as últimas águas que banharam minha mãe foram um abençoado batismo de despedida, que relaxaram prazerosamente seu coração até ela, suave e merecidamente, adormecer, enquanto preparavam seu novo alvorecer”. Missão cumprida, aos 84 anos ela entendeu ser inglório ficar, que isso não mudaria o destino de filhos, netos e bisnetas. Em boa conta com Deus, ela pôde decidir agir em outro plano.

     Mamãe nunca temeu morrer. Católica fervorosa, falava do fim da vida como a ida para um local de descanso e reencontro com pessoas amadas. E se por um lado ansiava se juntar a filha, seus pais e irmãos que já tinham partido, por outro se via necessária aqui, com suas preces e promessas para os filhos e sua amorosa e agregadora força matriarcal. Foi por isso que não sucumbiu após minha irmã mais velha ser levada por um câncer em 2000, aos 47 anos, embora tenha tido uma espécie de morte pela metade.

     Minha mãe fez promessa e, sem ter adiantado, deixou de comer doces e pintar os cabelos, seu riso largo se estreitou e um antigo reumatismo se alastrou. Ainda assim, foi minha cura quando entrei em depressão pela mesma perda. Viajou comigo ao volante para Cabo Frio, num road movie somente nosso, com praias, passeios e uma inédita cumplicidade. Desabafamos sobre amores e sofrimentos, relembramos histórias, dormimos de mãos dadas, nos abraçamos, rimos e enxugamos lágrimas uma da outra. Descobri a amiga que sempre tive e em seu ombro castigado chorei meu primeiro luto, quando quem mais sofria era ela.    

     Já cicatrizando, fui para o apartamento onde há meses morava sozinha, mas confesso que pensei em voltar para baixo das asas de minha mãe, ser mimada e mimá-la, recuperando o tempo perdido quando as rotinas eram pesadas e a casa lotada. Mas tudo é como deve ser, traçado lá de cima e por nosso livre arbítrio.  Dentre planos a, b, c ou d, escolhemos como viver. Decidi continuar no meu canto, assim como ela escolheu ter sete filhos - pela tese de procriação do catolicismo, porque amava ser mãe ou para aumentar o número de filhos homens.  Vieram três filhas, um filho e mais três filhas...

     Foram 63 meses de gestações e dezenas de outros com amamentação e cuidados. Uma vida de abnegações e dificuldades, que enfrentou como guerreira sem escudo, de peito aberto tantas vezes sangrando. Por isso, da mãe que me teve já aos quarenta, não me lembro de afagos e beijos demorados na infância, como os que troco com meus filhos. Entre pia, tanque, fogão e tantos afazeres que garantiam nossa sobrevivência tanto como os ganhos de meu pai, ela não tinha tempo para chamegos, o que se permitiu bem mais tarde. Como dizia, viveu épocas de vacas magras, quando fraldas descartáveis, micro-ondas e máquina de lavar eram artigos inimagináveis ou de luxo.

     Seus mimos, aprendi a aceitar, vinham de jeito diferente: na forma zelosa como preparava nosso material escolar, no carinho com que costurava roupas de festa, no tempero gostoso de sua comida, no ajeitar de cobertas nas noites frias, no fervor sincero de suas orações por cada um de seus filhos - a cada vestibular, a cada busca de emprego, a cada febre, a cada madrugada na rua. Seus ensinamentos não vieram em conversas íntimas, mas no seu exemplo de dignidade, fé e perseverança, no seu apego à família e à honestidade e no seu repúdio à vulgaridade, no corpo ou no caráter.

     Minha mãe não era de anúncio de margarina. Era aquela com lenço e bobes nos cabelos entre panelas e flanelas que, nervosa porque ter se queimado ou pelo cansaço, perdia a paciência com os chiliques, artes e brigas e nos dava palmadas. Depois, se arrependia e chorava disfarçando pelos cantos (mas eu percebia). Era a que, após nossas palhaçadas, dava um sorriso gostoso com a covinha pronunciada ao lado direito da boca. A mesma que, vaidosa, se maquiava e se arrumava com salto alto para nos buscar na escola quando dava ou para o cinema seguido de pizza na Praça Saens Pena com meu pai. E, ah, como era bonita... por fora e por dentro.

     Mamãe era aquela da missa aos domingos, novenas e romarias. A devota de Nossa Senhora de Aparecida e São Judas Tadeu que pedia mais para os outros do que para si, ajudava orfanatos, asilos e parentes, mesmo às voltas com muitas privações. Era o feijão e o sonho, a praticidade e a bondade que fortaleciam e inspiravam. Era a que fazia escândalos por medo de lagartixa, que gritava e socava a mesa nos jogos de futebol do Flamengo e do Brasil e gargalhava segurando a barriga para não fazer xixi durante as piadas. Senso de humor não faltava à Apparecida. “É Apiparecida, viu?! Com dois pês!”, ainda a escuto repetir.  

     Acho que até o fim minha mãe pensou no melhor para os filhos, não querendo lhes incomodar com progressivas degenerações de saúde. Passou conosco Natal, Ano Novo e se despediu de cada um. Dias depois, sentada em seu derradeiro banho, partiu de alma literalmente lavada e cheirosa. Em sua Missa de Sétimo Dia, enquanto minha irmã lia esse texto, agora com modificações, um médium conhecido a viu sorrindo no altar da Igreja.  Isso confirmou o que já intuíamos: seu espírito seguiu livre e em paz.




Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Google Imagens (1)
           Pixabay (2)

Um comentário:

  1. Meu amor,

    Seu texto, lindo como sempre, me fez lembrar também da minha falecida mãe. Que pena que as duas tiveram pouco tempo para se conhecerem. Que pena que minha mãe não pode curtir o caçula dos netos. Ela iria, com certeza, se apaixonar pelo Gabriel. Que falta que elas fazem!!!
    Obrigado pelo seu amor de esposa e de mãe!!!
    Te amo!!!
    Beijos,
    Sidney

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