quarta-feira, 3 de março de 2021

Carta para minha tia

 

Oi, Tia Lourdes!

Lamento não ter me despedido antes de sua partida. Escrevo agora a carta que quis lhe enviar desde o Natal e não consegui. Correria na rotina, pouca inspiração sobre o que dizer, desânimo pelo mundo... Também, confesso, faltou empatia para me sentir no seu lugar. Pensei que haveria tempo, apesar de você estar com 94 anos, num asilo e na pior pandemia em um século, que tornou raras as visitas antes assíduas de minhas irmãs. Dois anjos sem asas, testemunhas do epílogo de suas memórias e vida.

O ser humano tem essa mania de adiar o que quer fazer e assim os desejos não se cumprem. Fica então a lacuna do que teria sido e sentido e só a imaginação pode preencher. Eu imaginei um texto breve e leve que te abraçasse no meu lugar, falando de mim e minha família e de lembranças carinhosas suas. A memória se desenrolou em novelo ao me ver criança, com você me conduzindo pela mão até a bomboniere da envidraçada e misteriosa “sala de visitas” da casa dos avós Farias. O “palacete da Rua Amaral 14”, segundo seu exagerado irmão. Ah, meu pai...

Sabe, na verdade eu considerava o sombrio casarão cinza mais seu e da Tia Neusa, cuidando até o fim da rotina doméstica e dos velhos acamados, cada qual num quarto, para só depois pensarem em suas vidas. Casaram-se aos cinquenta anos quando absurdamente se dizia que aos trinta a solteiras “ficavam para titia”. Devem ter sido anos sofridos, embora saiba que você teve um trabalho fora, vida social e namorados, o que contribuía para seu jeito falante e bem-humorado – contrastando com o ar tristonho e contido de sua irmã. Te admiro, tia, por a duras penas romper o conservador ciclo de domínio masculino: um pai autoritário e quatro irmãos homens favorecidos.

Volto à “sala das visitas”. O suntuoso cômodo me fascinava quando ia com meu pai ver os avós em sábados ou domingos, dos meus seis aos nove anos de idade. Um lugar cercado por grandes portas duplas com detalhes quadriculados em vidros e espessas cortinas rosas, dando para o escritório e a sala de jantar.  Com sofá e poltronas robustos em tecido dourado e a mesa baixa coberta de espelho, de onde você retirava o pote de bombons para eu escolher um ou dois. Ao entrarmos e sairmos, você girava a chave na porta e eu me achava parte de um momento especial. E  era, embora rápido. O suficiente para me ver de novo ali, sentada no estofado a observar tudo ao redor. Apesar do nome, a sala parecia intocada e nunca receber visitas.

Lembro também que você me dava biscoitos amanteigados de uma lata de bolas vermelhas - saídos de uma das portas dos armários azuis a cozinha branca que dava para o quintal. Pequenas pastilhas pretas hexagonais formavam desenhos de flores salpicadas no chão. Eu gostava de saltitar com uma perna só sobre elas. Como os bombons, eu levava os biscoitos para saborear na sala de estar, encolhida no vão mais baixo sob a escada de madeira clara onde havia uma passadeira vermelho-sangue. Assim eu adoçava a amarga espera até me chamarem para tomar bênçãos de avós que não me reconheciam, alheios em seus leitos. Sentia como se me chamassem para beijar as mãos da morte no andar de cima.

Tia, a carta que imaginei seria diferente desta, que redijo no meu laptop. Seria manuscrita à caneta, com notícias amenas sobre as crianças e os meus escritos, numa folha pautada, posta num envelope e remetida pelos Correios, como as que demoravam dias até chegar, lacradas com cola, selos, carimbos e a ansiada promessa sobre o que abrigavam. Guardo algumas românticas trocadas por meus pais. Imagino que você escreveu e leu várias na sua juventude e se emocionaria com surpresa tão inusitada em tempos tão estranhos e solitários. Etéreos como o álcool que esteriliza e apaga as digitais dos dedos e dias.

Quando soube de sua morte, chorei ao te imaginar abrindo  uma carta minha, mas intuo que agora você lê estas palavras, assim como ouviu as que mentalizei em orações por não ir a seu funeral e à missa de Sétimo Dia. Me desculpe, tia, mas ando com muito medo. Medo do presente e do futuro e talvez por isso tanto volte ao passado... Ele não me assusta, por mais que tenha alguns fantasmas.

Ao menos desta vez não há problemas com internet, como na tarde em que minhas chamadas de vídeo para você não conectaram. Devia ter insistido noutro dia! Agora me resta pensar que sua conexão está a anos luz do wi-fi e de qualquer forma terrena de comunicação, talvez por telepatia. E saber que o que escrevemos, mesmo por trás de vidros, vai sempre além do que queríamos dizer. Congela o tempo e aquece as almas.

Queria te contar, tia, que tenho escrito sobre minhas memórias, incluindo as longínquas sobre mues antepassados de mãe e pai. Como eu os via ou imaginava. Nos últimos anos, passei a querer saber melhor quem eram. A sensação de finitude me faz procurar raízes para entender o que sou, em que terreno fui fincada. Você poderia ter me revelado mais detalhes desse lado da minha família, seus problemas e origens - a cor ´parda` na certidão do vovô, a migração dele e da vovó do Ceará, a loucura rondando ... Sempre  o porquê de todos os cômodos da casa da Amaral 14 se intercomunicarem. Para que tantas portas, tia?!

Nem sei se você responderia as minhas perguntas, se sua memória e sua emoção permitiriam. Mas não se preocupe com isso agora que outras portas se abrem em seus novos caminhos. Eu tentarei destrancar as minhas com as palavras, mas sei que alguns segredos e histórias acabam mesmo sepultados com as famílias. É a lei da vida, que às vezes se decifra somente após a morte. Siga livre e em paz e quando chegar a hora reencontre seu marido, seus pais, sua irmã e seus irmãos, para repararem o que for preciso. Eles, minha mãe e minha irmã gostarão de lhe auxiliar por aí, se é que já não o fazem.

Sabe, tia, creio que a vida na Terra - bela apesar das dilacerantes dores – é breve passagem, provação para a maior evolução que nos aguarda. Temos que fazer o melhor para aprender o que pudermos aqui. Eu, Sidney, Júlia e Gabriel seguimos  com saúde e aprendendo. Juntos. Sozinhos. Confinados em nosso apartamento, não pegamos a Covid e faremos tudo para não pegar. As crianças (quatro anos passaram desde que a visitamos) viraram adolescentes, mas não vivenciam essa fase linda. Isso me entristece. Mais do que a eles, que ainda não se dão conta do quão único é ter dezesseis e quatorze anos. Sei que você falaria: “Como cresceram e estão bonitos!!!”, igualzinho me dizia.

Me emocionei ao saber de histórias suas e receber pelo celular  fotografias achadas em seus poucos guardados, como as que ilustram esta carta. Você e sua grande amiga, lindas em seus vinte anos e com grande semelhança física com minhas irmãs mais velhas, também tão ligadas. Pela primeira vez, vi minha avó paterna de pé, saudável, parecendo uma melindrosa da década de 1920. No verso da foto, a letra do meu pai diz que ela estava com 27 anos, em 12 novembro de 1923. Naquele dia ele completava um mês e você nasceria em três anos. 

Esta carta não é de despedida, mas de reconhecimento da sobrinha e neta caçula a você, à Tia Neusa e à avó que mal conheci. É uma carta de reencontro também comigo e com a herança afetiva das mulheres Farias. As três foram sacrificadas numa família patriarcal, que as subjugou às suas vontades, seus mandos. Meus tios e pai estudaram até o nível superior e constituíram famílias enquanto  irmãs e mãe varriam desejos, cozinhavam frustrações, entrevavam sonhos. 

Tia querida, você foi o último elo vivo na corrente dos meus ancestrais Farias, mas a família não termina aqui. A morte não põe um ponto final nas histórias enquanto as almas dos que partiram habitarem as dos que ficaram. Resgatar e escrever memórias são as formas mais bonitas de perpetuar vidas.

Com amor,


Nadja



Texto e imagem: Nadja Bereicoa


quinta-feira, 29 de junho de 2017

Não superexponha a felicidade



Não se trata de esconder a felicidade a sete chaves, pois nem você irá achá-la. Mas não a superexponha, como um troféu na vitrine. Isso é tudo, principalmente vaidade e euforia, menos felicidade.  Se você possui um amor correspondido, preserve-o. Se tem tido conquistas, proteja-as. Se é feliz, agradeça e siga discretamente assim. Em tempos de redes sociais, isso pode trazer mais ganhos do que perdas. 

Se você não percebeu, felicidade demais - ainda que seus estereótipos - às vezes incomoda quem não consegue ou não sabe ser minimamente feliz. Pode despertar a dor e a cobiça. Sim, cuidado, existem ladrões de felicidade capazes de furtá-la sorrateiramente, com seus campos magnéticos negativos. São estranhos, conhecidos e até mesmo nós, quando o ego não nos deixa ver que não é preciso muito para ser feliz.

Cada vez mais acho que a felicidade mora em momentos triviais, precisando apenas de entrega, atenção e... privacidade. Ela vem não apenas da alegria, mas do que é emocional e essencial e isso é impalpável e invisível. Como o bem-estar, o autoconhecimento e a paz interior. Até mesmo decepções, frustrações e tristeza, vividos sem subterfúgios, nos fazem aprender a ter mais felicidade, a valorizar sua essência no dia a dia.

A felicidade não pede por holofotes e audiência, mas muitos parecem ignorar isso, preferindo esfregar o seu pretenso sentimento nas caras dos outros. Para esses, ser feliz é ter casas luxuosas, carros possantes, vinhos raros, viagens caras, aparências exuberantes e amores de romance. Tudo bonito e perfeito.

Nada contra sucesso, conforto, beleza... No entanto, esses são meros acessórios externos de felicidade, perecíveis cascas que esfarelam se não há o que as sustente.  A exibição dessas fachadas felizes cria uma mórbida simbiose entre os que invejam e os que gostam de ser invejados, provocando amargura tanto em quem não as possui como em quem as ostenta mas por dentro vive um grande vazio existencial.

Quem é feliz não faz alarde, nem pretende instigar a infelicidade alheia. Conquistas pessoais e materiais sem dúvida alimentam a sensação de felicidade, mas supervalorizar e expor isso pode nos tornar alvos de furtos de felicidade. Quem não quer correr riscos prefere buscar de forma silenciosa seus objetivos, sem perder o foco da felicidade genuína, que é interna. Somente ela pode levar à plenitude.  



Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay





sexta-feira, 2 de junho de 2017

Indiferença, silêncio que diz muito


A indiferença é silêncio que diz muito e cala fundo em quem a percebe. Ela é um ato de desamor talvez pior do que o ódio, porque fere com frieza e distância. Sob a casca do descaso, o indiferente não se motiva, não sente ou finge que não sente. A grande questão é o que está por trás do que parece ausência de emoção, porém é a mistura de vários sentimentos disfarçados que podem vir de quem a gente mais estima.

Em épocas de emoções voláteis e volúveis, que surgem e somem com toques na tela do celular, pessoas automatizam e banalizam reações e relações. Vivem extremadas com aquilo que não lhes diz respeito e indiferentes com quem e o que deveriam lhes importar.  Vivem entre a adrenalina e a anestesia, externando instintivamente seu lado sombrio, em atitudes que machucam, e racionalmente represando emoções luminosas, que fariam bem a outras pessoas.

Por falta de vontade, estratégia psicológica ou depressão, muitos não conseguem externar um elogio ou uma admiração, ostentando o ar blasé do desinteresse ou da apatia. Esse é o reflexo de uma parcela egocêntrica da sociedade, que privilegia o instantâneo e estimula a competição. A reciprocidade é a sua regra de ouro, em que um input já espera pelo feedback. Se isso não ocorre, a indiferença vira birra de criança, retaliação.

A indiferença pode sinalizar desprezo, fuga ou defesa ou ser apenas uma decisão de neutralidade, para não se comprometer, não se aborrecer. A diferença da indiferença está em sua intenção e no seu alvo. Quando o indiferente é alguém de nosso círculo de afetos, que ignora as nossas conquistas e até nossas dificuldades, pode ser um sinal de emoções conflitantes: ressentimento, ciúme, raiva... ainda que haja bem-querer.

Todo mundo quer ser notado pelo que faz de melhor, mas vale analisar se o silêncio do outro é pontual, se ele está com problemas, sem tempo ou se realmente não tem consideração, talvez por inveja. É melhor pensar bem antes de ser indiferente só para dar o troco, pois esse jogo é capaz de nos dessensibilizar. Mais vale acreditarmos em nosso potencial, sem nos abalar com a indiferença alheia. Até porque muitas vezes o que impera é o ditado "Quem desdenha, quer comprar".   

    
Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay






quinta-feira, 25 de maio de 2017

Perdoar é terapia que cura e engrandece


Perdoar faz parte de um processo transformador, que cura e engrandece. Não à toa a palavra deriva do latim perdonare - de per, “para”, mais donare, “doar”. Doa-se o que se tem de melhor: a esperança de que a dor passe e ensine. Quem perdoa se cansa de sofrer e lamentar o que lhe fizeram, escolhendo apostar no presente ao invés de se martirizar com o passado.

Com o tempo, aprendi que perdoar é, mais do que amor ao próximo, uma prova de amor-próprio, para preservar a saúde, mental e física. Das decisões que podemos tomar, o perdão é das mais libertadoras. Ele deixa a alma leve, sem o peso de sentimentos ruins, que  alimentam a dor, ressentindo-a, estagnam a vida e adoecem. 

Infelizmente, o perdão é considerado ato de fraqueza, enquanto a vingança é coroada como força e justiça. Impera no mundo a Lei de Talião, do “Olho por olho, dente por dente”. Ofendidos preferem se igualar ao ofensores, retribuindo na mesma moeda a raiva, a deslealdade, a indiferença... 

Quando a gente rumina o que é ruim, se maltrata mais do que aos que nos magoam. Estes costumam subestimar seus atos ou se blindarem com convenientes amnésias.  Se têm noção deles, não sentem a dor latejar como quem atingiram. Mas em algum momento seus erros pesarão em suas consciências. Elas ou a vida se encarregarão de puni-los, na medida das consequências geradas. 

Ao longo da vida fui ferida de várias formas e precisei perdoar para preservar minha saúde e minha evolução espiritual. Certa vez recorri à chamada psicoterapia do perdão, técnica de abordagem sistêmica que considera que os atos danosos são imperdoáveis mas quem os comete pode e deve ser perdoado, para que as relações sejam reconstruídas em novos patamares e a vida siga sem sequelas paralisantes, danosas.

Todos ferimos alguém, mesmo que com palavras e atitudes cotidianas. Costumamos ser inflexíveis com quem mais convivemos, como se a intimidade e o amor fossem salvo-condutos... O processo de perdoar e ser perdoado pode nos fazer refletir sobre como temos agido e o que temos de mudar. Seu primeiro passo é o auto perdão, de nossos erros e fragilidades. 

O perdão pode levar meses, anos, décadas ou uma vida inteira. Mesmo com ele, pode ser inevitável um afastamento temporário ou definitivo.  Perdoar não traz o esquecimento, não nos faz voltar a confiar em alguém, mas nos deixa seguir com menos expectativas nos outros e mais autoconfiança. Perdoar é fazer um novo pacto com a vida, de paz interior, que nos permitirá lembrar sem dor das cicatrizes que ficaram. 

 

Texto: Nadja Bereicoa  

Imagem: Pixabay

 

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Quem quer ter razão perde tudo, até a razão


Algumas pessoas perdem tudo para provar que têm razão. Perdem tempo, amigos, saúde... Tudo pela necessidade de levar a sua opinião às derradeiras consequências do convencimento. Tudo para dar a última palavra numa discussão acalorada, com tréplicas e quádruplas.  Ao final, esbravejam, xingam e perdem a paz e a lucidez, junto com a razão. 

Poucos são os sábios que se calam quando acham que têm razão. Se veem o diálogo se encaminhando para a animosidade, trocam a vaidade pela sanidade. Para esses, escolher não ter razão publicamente é um exercício de humildade, é abrir mão de uma tola onipotência e se contentar com a consciência silenciosa e solitária da razão.

A razão barulhenta, que quer competir e estar certa, quase sempre afasta, magoa. A maioria das pessoas faz valer essa razão de forma irascível, como se suas palavras pudessem penetrar na alma alheia para catequizá-la. Tempo perdido em vão, porque razão é algo que todo mundo carrega e procura defender. A vida mostra quem a tem de fato.

Nas redes sociais, onde são comuns o chavão “Pronto. Falei!” e os textões de desabafos, muitos acham que falam o que pensam, quando falam sem pensar. Esquecem-se que “quem fala o que quer, ouve o que não quer”, como diz o ditado. Se disparam palavras como metralhadoras, deveriam estar preparadas para enfrentar munição dos que também defendem com veemência suas opiniões ou baixarem a guardar.  Mas o que se vê em geral é mais artilharia pesada.  

Não custa ser gentil com as palavras e previdente quanto aos efeitos danosos de certas discussões. Há aquelas que de antemão se mostram perigosas e inúteis, como sobre futebol, política e religião. É preciso tato para não ferir nem se deixar ser ferido, entendendo que sinceridade não significa grosseria. E que verborragia e agressividade não fazem vencedores. Ao contrário, geram perdedores e arrependimento.

Dialogue por ideias, argumente por respeito, converse para achar o fio da meada que você perdeu ou nunca encontrou – debata pelo que for -, mas sempre para acrescentar. Nunca para ganhar. Você ganha se souber sair de uma discussão na hora certa, mostrando sua visão calmamente. Aliás nem entre nela se não tiver calma e tempo suficientes para não alterar o seu equilíbrio emocional. 

Uma das vantagens de envelhecer é que a gente abre mão das certezas, diante das reviravoltas que testemunhamos na vida. Nossas prioridades mudam e a tranquilidade passa a figurar dentre as principais. Passamos a não ligar para opiniões alheias sobre nós e a não condenar sumariamente o que os outros pensam ou fazem, considerando somente o que venha somar. Passamos a relativizar fatos e sentimentos em prol do que importa de verdade. Ter razão deixa de ter razão.

De que adianta o coração palpitar, o corpo tremer e as palavras saírem em descompasso com os sentimentos? Isso só vale por amor, não por raiva e arrogância. Se você já sentiu os péssimos sintomas físicos e psicológicos de uma discussão, sabe que é melhor trabalhar a respiração (sim, inspirar e expirar profunda e pausadamente faz milagres...) e não carregar no tom ou nas palavras. Fale, mas ouça, pense e mude de opinião se quiser. A única razão que importa é a de ser feliz.


Texto: Nadja Bereicoa

Imagem: Pixabay


quinta-feira, 20 de abril de 2017

Estamos sempre de passagem


Se permitirmos, a Páscoa – que significa passagem em hebraico - acontece todos os dias em nós. Estamos sempre de passagem por lugares, pessoas,  sentimentos e momentos, que nos fazem bem ou mal. Cabe-nos escolher do medo à coragem, do egoísmo à solidariedade, do ódio ao amor, da tristeza à alegria...  A forma como atravessamos nossas etapas definirá onde chegaremos e se iremos nos aprisionar ou nos libertar.

      Você pode ser cristão ou não. Pode acreditar em ressurreição ou em reencarnação. Pode até não ter religião e achar que tudo acaba com a morte, o que não é o meu caso. Penso que estamos na Terra de passagem... Mas ainda que você considere esta vida única (e é, pois nenhuma outra será igual) deve, por isso mesmo, se deixar viver. Entregar-se à acomodação da infelicidade por achar que esta é sina, protege ou não dá trabalho, é morrer aos poucos. Não morra em vida. E se morrer, renasça, reinvente-se. Sua alma lhe agradecerá. 

     Todos os dias a gente decide quem vai se tornando e o que fazer pelo mundo, se vai subtrair ou somar. A gente decide como encarar os fatos indesejados que nos atropelam.  Decide, por exemplo, que o fracasso não é uma derrota, mas uma tentativa que não deu certo, rumo ao êxito. E então decide se continua com passo firme na mesma rota ou se vai trilhar um novo caminho, por mais difícil que seja caminhar.

     Cultivar a dor além do ponto, remexer e afundar feridas que já fecharam é recusar-se a viver.  Precisamos respeitar as cascas que secaram e seu tempo de caírem naturalmente. Se restarem marcas, quando as olharmos sem a opção por sofrer elas nos lembrarão do que aprendemos mas não queremos repetir. Aí renasceremos. Renascemos em um abraço caloroso, um pôr do sol indescritível, uma viagem dos sonhos... um novo jeito de ser. 

     A gente renasce quando envelhece crendo sempre que pode superar, mudar, ser melhor e aumentar a nossa capacidade de compreensão, bondade, resiliência. Se deixarmos, se não resistirmos, o tempo opera em nós o grande milagre da transformação e da evolução espiritual. São as nossas passagens, nossas Páscoas pessoais. 



Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay



segunda-feira, 20 de março de 2017

Deixe o outono te desfolhar



O verão mal terminou e já se sente a temperatura amena e um mistério no ar. Que março carregue em suas águas o que não tem razão de ficar e deixe cair nas calçadas as primeiras folhas do outono de quem quiser recomeçar. A gente se mostrou, dourou a pele, ardeu em brasa e não pensou em nada, porque o calor não deixava. Mas agora, preste atenção: é tempo de transição. Ventos fortes começam a soprar...

Vá com calma, escute a sua intuição e o que os ventos lhe dizem. Veja para onde correm e não necessariamente siga as suas direções. Você pode se deixar levar, tomar impulso até o meio do caminho e então seguir sozinho.  Ou contrariar seus rumos e andar na contramão de tudo - dos outros e da própria razão -, fazendo de bússola o seu coração. Se ele vibrar forte, dê uma chance à sorte e vai ser feliz!

Mas não se esqueça de pensar, porque sempre precisamos analisar o que fizemos ou não, para poder de novo sonhar. Aproveite que o tempo é de desfolhar e mude, se desnude, troque de pele se preciso for. Limpe, esfolie, remova as células mortas e as impurezas que se acumularam nos últimos tempos. Renove-se e, acredite, você renascerá.

Olhe-se no espelho da alma e veja o que não deu certo, do que se arrependeu ou porque se machucou. Será que você tentou todas as possibilidades de crescer e de ser feliz? Inventou, misturou, arriscou, insistiu? A felicidade não tem fórmula, mas a vida oferece ingredientes e temperos saudáveis, infindáveis, para criarmos novas receitas, a cada dia. Experimente, para aguçar o paladar. 

Regra básica para não desandar uma receita é descartar o que lhe faz mal ou cuja validade venceu. Do contrário, azedará, estragará, envenenará tudo o que você tocar.  Se magoou ou traiu alguém e isso lhe doeu, arrependa-se e peça desculpas - se não pessoalmente, ao menos ore com fé ou mentalize a melhor energia que puder, e isso se canalizará para selar o bem entre vocês.

Já se você foi magoado, apunhalado, eu lhe entendo bem e digo o quanto é necessário se recolher, deixar sangrar até a última gota. Mas uma hora, pra não adoecer, é preciso dar um basta, parar de purgar a mágoa e se vitimizar. Apenas assim você vai cicatrizar e ir adiante, com ou sem quem lhe feriu. O perdão lhe ajudará. Mais do que amor ao próximo, significará o seu amor-próprio.

Comece perdoando a si mesmo, se fracassou, mentiu, se omitiu, desistiu ou nem tentou. Depois pese o que lhe fala alto no momento: amor, saúde, amizade, sucesso, paz, sexo, dinheiro...?! Talvez você queira um mix de tudo, bem dosado pra equilibrar a balança e o juízo. Talvez você precise mais de um deles, para compensar que esteve muito tempo em falta. 

O importante é não deixar erros se repetirem e expurgar o que estiver secando, apodrecendo, morrendo, pra nascer sua melhor versão. Se entregue ao outono, se desapegue e deixe que ele leve o que se completou, o que não serve mais ou o que foi efêmero e não agregue. Além de momentos lindos para lembrar, ficará o que você queria esquecer porque doeu fundo e, por isso, lhe fez crescer. Mas o antigo sofrimento haverá partido e outras histórias terão chegado.

O outono cobrirá os novos caminhos com folhas de vários feitios e tons – verdes e também ocres, amarelas, vermelhas e marrons –, desnudando as árvores e a nossa sensibilidade.  Que ele seja bem-vindo e nos inspire com sua mágica capacidade de transformação, mirando em outras estações.



Texto: Nadja Bereicoa

Imagem: Pixabay

 

 



sexta-feira, 17 de março de 2017

Mulheres, do jeito que quiserem

     

Passei o Dia Internacional da Mulher com TPM, uma forte enxaqueca, uma cólica de causar contorcionismo e o humor entre depressivo e irritado. Após meus filhos saíram pra escola, tomei um remédio e dormi a manhã inteira, ignorando a data. Quando acordei, uma tempestade de parabéns, rosas, galãs embrulhados para presente e palavras melosas ou de luta enalteciam as mulheres no celular e na TV. Achei tudo fora do tom e não me identifiquei com nada.

De um lado, o discurso feminista de empoderamento e contra o chavão ´bela, recatada e do lar` nos retratando como mulheres-maravilhas infalíveis, o sexo forte. Do outro, um discurso presidencial machista exaltando o papel doméstico feminino, de cuidar dos filhos e do marido e de gerir o orçamento da casa a partir de supermercados. No meio, propagandas vendendo produtos cosméticos femininos com descontos imperdíveis.

Muito mais do que de celebração, a data é política e de reflexão, ainda necessária em tempos de violência e desrespeitos contra os corpos e direitos das mulheres no mundo. Mas todo 8 de março é a mesma coisa: falação, comércio, espetáculo e pouca ação. De todos os lados, falta organização para mudar o necessário, seja a falta de isonomia salarial no desempenho das mesmas funções, seja a difusão de estereótipos de gênero, seja a eleição de mulheres que verdadeiramente nos representem.

Certo que há força bruta, fanatismo religioso e poder econômico jogando pesado contra nós, além de alienação e cinismo dos que fingem não ver as desigualdades ou teimam em afirmar que homens e mulheres são iguais.  Somos absolutamente diferentes, nos aspectos psicológicos e biológicos, e devemos sim ter tratamentos desiguais. Como pregava Rui Barbosa, igualdade é tratar desigualmente os desiguais.

É preciso ajustar o foco do que importa. Do contrário, teremos sempre um abismo entre o discurso e a prática. De nada adianta o patrulhamento agressivo e sarcástico de feministas criticando indistintamente os homens ou as mulheres que não se enquadram nos padrões politicamente corretos. Nos classificarem como independentes ou submissas, fortes ou frágeis, espertas ou bobas, rodadas ou recatadas, do bar ou do lar é limitar nossa liberdade.

Nossas ambições e humores mudam, de acordo com os anos e os hormônios. É difícil sentir os efeitos pré-menstruais ou os da menopausa, mas também não é fácil para os homens conviverem com nossa bipolaridade nesses dias. Regra geral, não somos melhores nem piores do que eles, que também têm alterações hormonais e emocionais que não se permitem viver ou discutir.

Os homens estão aprendendo agir de modo diverso do que todos, inclusive suas mães, lhes ensinaram. Eles devem ser incentivados a invadir o universo feminino, ao invés de ouvirem que não têm jeito para cuidar de um bebê, fazer compras de supermercado, opinar na decoração da casa, cozinhar... Novos direitos masculinos, como licença-paternidade ampliada e guarda compartilhada, também podem significar ganhos para mulheres e um caminho de diálogo.

Bem, essa é apenas a minha opinião. Mulheres são diferentes e divergentes na casca e na essência. Somos imperfeitas, com virtudes e defeitos. Nada de heroínas, deusas ou santas. Podemos ser o que quisermos: extrovertidas, sérias, casadas, solteiras, profissionais, donas-de-casa, com ou sem filhos... Não nos encaixarem em rótulos ou nos compararem já é um presente. Para todos os dias.



Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando a gente se sabota



Sabotagem não é apenas estratégia de inimigo para prejudicar quem detesta. Longe de planos maquiavélicos, ela pode partir de nós mesmos e ir minando nossa felicidade com atitudes simples e repetitivas, de forma inconsciente ou não.  Começa se apoderando de pequenos momentos - prazeres ou responsabilidades - até invadir a vida inteira. 

Prorrogarmos etapas e relacionamentos vencidos ou a solução de problemas e incômodos, postergando o que podemos fazer hoje para o dia seguinte e depois para o outro e outro. Vivemos, procurando sempre justificativas, uma sucessão de pendências e adiamentos. Adiamos, principalmente, o enfrentamento do trabalho que dá ser feliz. 

Nos sabotamos ao nos recusarmos a enxergar o que está diante de nosso nariz, sobre a vida, os outros e nós. Custamos a entender que a felicidade, tirando momentos afortunados, quase sempre não vem de graça. Vem de querer.  E a gente sabota o nosso querer quando não enfrenta tudo o que é preciso para ter ou fazer o que deseja, seja para não desagradar alguém ou por preguiça ou medo. 

Ah, o medo... Que concorrência desleal!  Ele é nosso maior sabotador, simbolizando um complexo de inferioridade. Enquanto o cultivarmos diante do que está por vir, ele esmagará a nossa força interior, por maior que ela seja. Precisamos parar de ter medo da felicidade, de que algo ruim aconteça, de saber a verdade, do que os outros vão pensar...

Até respeitarmos o que nos faz bem, nos importamos em demasia com os outros e nos violentamos. Permitimos que pessoas nocivas invadam o nosso espaço ou suguem nossa energia com seus problemas, conselhos ou comentários negativos. Dizemos sim querendo dizer não e vice-versa.  Fazemos o que não queremos e deixamos de fazer o que queremos, engolindo a frustração. 

Sabotamos nossos sonhos deixando-os no plano da irrealidade. Não nos atrevemos a colocá-los em prática para evitar decepções, especulando o pior. Assim nunca poderão dizer que deram errado... Ou então iniciamos novas empreitadas, mas desistimos nas primeiras dificuldades. Como se não fôssemos capazes de alcançar o sucesso ou fortes o suficiente para resistir ao fracasso. 

Muitos fogem de seus amores. Outros ignoram as suas vocações. Inúmeros se atrasam para compromissos. A autossabotagem  acontece de várias formas, mas sua origem tem sempre a ver com baixa autoestima e falta de autoconfiança e amor-próprio. Por isso, nos acostumamos a inventar pretextos, arrumar complicações, anestesiar dores e mergulhar em ilusões. 

Somos os responsáveis por sair das armadilhas que criamos, por abrir correntes a que nos prendemos. Um bom começo é enfrentar nossos medos e deixar de cultivar pensamentos e comportamentos tóxicos. Quando eles vierem, temos logo que substituí-los pelos que nos motivem. Ainda que isso assuste e canse no início, ainda que haja recaídas, a confiança e a coragem nos fortalecerão até conseguirmos. Quanto mais deixarmos de nos proteger da infelicidade, mais nos aproximaremos da felicidade. 

 

Imagem: Pixabay

Texto: Nadja Bereicoa

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Precisamos dar tempo ao tempo


O tempo é um grande e sábio amigo, acredite. Tem fama de cruel e implacável, mas o que apenas faz é passar serenamente e nos transformar, se deixarmos para melhor. Com o tempo, quase tudo se aquieta, se resolve, se direciona. Se o tratarmos como um aliado, ele nos aponta as respostas para dilemas e dificuldades.

Se o tempo passa rápido, depende de nós. Às vezes corremos contra o relógio para dar conta do que necessitamos ou queremos, perdendo o foco do prioritário. Quem nunca pensou como o dia poderia ter trinta horas, mal aproveitando seus preciosos minutos?! No fundo, precisamos é desacelerar e dar tempo ao tempo - para que sementes brotem, ressentimentos cessem, feridas curem, ciclos se fechem e portas se abram.

Somente com o tempo a gente passa a respeitar a natureza dos sentimentos e dos dias. Há tempo de se conectar e de se desligar, de sorrir e de chorar, de se esconder ou se mostrar, de agir ou de esperar. Esperar - bem diferente de se acomodar – nos ensina a ter paciência. Disso vem a esperança, essencial para aguardarmos novos tempos.   

Por mais que haja descrença, precisamos lembrar que do breu da noite virá a claridade do dia. Cada amanhecer, faça sol ou chuva, pode nos despertar uma ideia, uma surpresa, um olhar. O milagre do tempo é que ele revolve tudo em nós. No exato momento em que vira passado, o presente dá lugar ao futuro. Somos essa mágica mistura dos tempos.

Mestre inteligente e irônico é o tempo. Nos prega peças e nos dá lições e recompensas, que ficam claras em histórias de vida que se repetem, se invertem, se apequenam, se agigantam ou até recomeçam de onde não deviam ter parado.  Pelos dias, meses e anos o tempo carrega nossas ações, palavras e pensamentos, trazendo-os de volta feito bumerangues nos ventos. 

O tempo leva o viço, mas pode trazer uma beleza maior: a consciência de sermos melhores do que antes. Ele mostra o que nos cai bem – aparência, companhias, atitudes, situações...- e nos afasta do que faz mal. Por experiência e intuição, a gente aprende a não perder tempo com o que não vale a pena, não nos merece. A gente aprende a ter sabedoria para viver e a acertar os ponteiros do tempo.



Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay




segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

De presente, a felicidade



Em clima de harmonia, paz e alegria, celebrei o último Natal em minha casa pela primeira vez, ao lado de marido, filhos, irmãos, cunhados e sobrinhos.  O aniversário de Cristo foi momento de reflexão, de celebrar o amor e sentimentos dele derivados, como tolerância, união, fraternidade e perdão. Optei por mais simbolismos e menos consumismo e ofereci a todos irreverentes ´kits de felicidade`, junto a um texto que escrevi. Não eram fórmulas, que não existem, mas metáforas.

De modo literal ou literário, oito itens renderam esta crônica natalina: um saco, um fitilho, um bombom, um bloco para anotações, um lápis, uma borracha, um elástico e um chá de camomila. Comecemos pelo bombom, porque doçura é imprescindível na vida e chocolate - já está cientificamente provado - traz alegria. Mesmo que você tenha restrições ao açúcar na sua dieta, pode acrescentá-lo ao seu dia com gentileza, solidariedade, ternura e sorrisos. O mundo, tão amargo, lhe agradecerá.

Quanto ao lápis e ao bloco, minha sugestão é para que você escreva, ainda que para si, sobre o que tem vivido, observado, sofrido. Registre memórias e sentimentos. É uma terapia, perceba aos poucos. Se preferir, deixe fluir uma poesia ou enumere tudo de bom que lhe aconteceu e liste sonhos, ideias e metas, lembrando que muitos não se concretizarão por algum motivo. Foi assim em 2016?! Não se culpe! Culpas são pesos injustos.

Nada melhor do que um ano com páginas em branco para criar ou reescrever capítulos e histórias, com cenários e personagens inéditos, mas nas páginas já preenchidas podemos usar a borracha do perdão para apagar erros do passado, nossos e alheios. Claro que alguns, com tinta indelével, precisam continuar ali, com suas fortes marcas a nos ensinar.  Outros, porém, desaparecerão e uns deixarão fracos vestígios. O importante é apagarmos os ressentimentos. A gente não merece sentir de novo, ressentir, o que doeu.

Momentos ruins servem para ser enfrentados e nos proporcionar crescimento espiritual. O elástico, que se estica, se flexibiliza e volta ao seu estado normal, representa a capacidade de superação, adaptação e resiliência que devemos adquirir diante de problemas, frustrações e divergências que se apresentam. A elasticidade exemplifica também a nossa tolerância com os outros, ainda que discordemos veementemente de seus pontos de vista.

Os seres humanos são diferentes, imperfeitos e surpreendentes, para o bem e o mal, o que torna a vida tão fantástica quanto difícil. Conflitos e crises sempre existirão, mas não serão resolvidos se guerrearmos, e sim se buscarmos o entendimento. Por isso, na hora de ânimos exaltados, pense bem antes de agir para evitar arrependimentos. Respire fundo, conte até dez, beba um chá de camomila e deixe a raiva passar.

Um saco transparente e um fitilho dourado também têm significados poéticos.  A embalagem é onde armazenamos com carinho o que de melhor podemos oferecer aos outros, nossos mais caros presentes. O longo laço representa nosso bem mais valioso: os nossos afetos. Família e amigos ajudaram a construir nossas histórias e lembranças. Eles valem ouro e são para a vida toda.

Meu kit foi uma brincadeira para inspirar. Não existem fórmulas de felicidade, tão cíclica quanto necessidades e desejos que surgem durante a vida. Criamos receitas, que às vezes desandam, não dão certo e nos fazem usar novos ingredientes. O certo é que alguns, como o amor, são indispensáveis. Não podem faltar, feito farinha e fermento em bolo. Precisamos, acima de tudo, de vontade genuína para testar, tentar, errar e acertar, para nos fazer felizes e aos outros também. Felicidade é constante aprendizado e nosso melhor presente.



Texto: Nadja Bereicoa

Imagens: Pixabay 

 



sábado, 15 de outubro de 2016

Pílulas milagrosas de infância

A infância, em sua essência, bem que podia ser armazenada pela Ciência, em fórmulas naturais para vitaminarmos nossos dias. Uma drágea e a mais sisuda manhã se iluminaria... Ingredientes como alegria, inocência, curiosidade, perspicácia, energia e fantasia seriam receitas milagrosas capazes de transformar a vida, com leveza e humor;                Como isso não acontece, podemos resgatar as crianças que fomos do fundo de nossas lembranças e aproveitar o convívio com aquelas que nos cercam, com lógica  e sentido próprios que surpreendem a nossa razão e despertam meninos e meninas em nós.
     Em homenagem ao Dia das Crianças, rememoro passagens engraçadas e poéticas protagonizadas por meus filhos quando bem pequenos. Em poucos anos eles deixarão a infância e certamente gostarão de saber um pouco do que pensavam, se divertindo e se emocionando.  Por isso, enumero algumas de suas historietas, quase anedotas, em forma de pílulas escritas. É a minha maneira de encapsular e ingerir o que a infância tem de melhor.

*** Quase, quase adolescente ***

Com cinco anos e meio a menos que sua extrovertida prima, minha filha sempre viu nela um referencial. Chegaram a brincar juntas de boneca. Mas com as transformações no corpo e no comportamento de Luíza, as brincadeiras escassearam. Até Juju estranhar e perguntar, aos cinco anos:
        - Mamãe, o que é mesmo ser adolescente? A Luíza já é?!
     Respondi que, aos 10 anos, ela era uma pré-adolescente e que depois entraria na adolescência, que é o período em que a criança vai, aos poucos, se transformando em adulto, o que terminava por volta dos 18 anos.  Júlia ouviu com atenção e balbuciou um “ah, tá...”. Meses depois me perguntou do nada:
        - Mãe, eu sou pré-pré?
         Não entendi e quis saber “como assim?!!!”.
        - Eu quero saber se eu já sou uma pré-pré-adolescente?!!!
         Definitivamente, ela era...

*** Duas figurinhas ***

Gabriel tinha quatro anos e ainda continuava a falar no fofo ‘bebezês’ que nós pais até corrigimos mas adoramos ouvir. Em um dia, inspiradíssimo, misturou tantos “Se eu sesse”, “Quando eu tinha fazido”, “A aula de psicomocicidade” que eu lhe falei
- Filho, você não existe...
Gabriel, que estava aprendendo sobre folclore brasileiro e seus personagens na pré-escola, questionou-me sério:
- Ué, mamãe, quer dizer que eu sou uma lenda...?!!
Quando ia explicar, sua irmã esclareceu por mim:
- Não,Biel!!! Quer dizer que você é uma figura!!! Mas não é dessas de colar em álbum que a gente coleciona não, viu?!!! Você é uma figura rara, dessas que a gente não acha nunca...

*** Abre-te Sésamo ***

Com ares de independência, aos 5 anos de idade, minha filha comunicou-me radiante:
- Mamãe, já terminei de fazer o trabalhinho de casa!
- Que bom, filha! Então guarde-o na pasta da escola, tá?
Sentada em sua cama, arrumando outras coisas, notei que ela travava um verdadeiro embate com a pasta sem conseguir abri-la, já nervosa, suando e emitindo grunhidos do tipo ai, ui, aanhh.... Foi quando intercedi:
- Júlia, você tem que puxar com jeitinho o fecho ‘eclair’...
Em sua lógica de criança, ela reagiu indignada:
- Mas ele não abre, mamãe!!! Só fecha...  Aliás, tinha que se chamar Abre éclair!!!

*** A melhor opção ***

Depois de mais um de seus pitis ensandecidos por nada, meu filho levou uma bronca de mim e me ameaçou, dando início ao seguinte diálogo:
- Se você brigar comigo de novo, eu vou chorar!
- Pode chorar, que não ligo. Se você faz coisa feia, mamãe tem que brigar...
Então, se você brigar comigo, eu vou gritar feito ma-lu-co!
- Aí eu vou ficar triste e aborrecida e te deixar de castigo, sem brincar de carrinhos...
Então eu vou me soltar da cadeirinha e fugir pra rua!!!
- Nunca faça isso, filho!!! Alguém malvado pode te pegar e te levar para bem longe e você nunca mais vai ver a mamãe, o papai e sua irmã!
Gabriel emudeceu um minuto, como se pesasse a situação, para voltar à primeira opção:
- Se você brigar comigo, então eu vou só chorar...   
  
*** Sonhando acordada ***

Um belo dia, com cinco anos, Júlia passou a adotar precocemente um hábito típico dos adolescentes: fechar a porta de seu quarto. Sem pedir licença, pois achava que crianças pequenas não deviam ficar trancadas, entrei para saber o que estava fazendo e a flagrei deitada na cama maravilhada, olhando pro teto e rindo. Como se visse algo secreto e surpreendente, talvez arco-íris, duendes, sabe-se l...
     - O que foi Juju? Tá pensando em quê?, perguntei.
     - Estou só sonhando, mamãe...
     - Ué, sonhando sem dormir?!!
     - É que eu gosto de sonhar acordada...
     Deixei-a em seus sonhos, mas com a porta aberta, pois achava que criança com aquela idade não devia ficar trancada. Dali por diante passou a ser costume encontrá-la no quarto com a porta fechada e, ao abrí-la, surpreendê-la andando de um lado a outro, sentada ou mesmo parada em pé com ar contemplativo. A resposta era sempre a mesma:
- Tô sonhando, mamãe...
     Enquanto isso, aumentava enormemente a sua criatividade. Já alfabetizada, escrevia e ilustrava as próprias histórias, fazia dobraduras e outras invenções mirabolantes e muito coloridas. Engraçado era que produzia suas artes com a porta de seu quarto aberta. Se esta estivesse fechada, eu já sabia: “Ela está pensando!”. Mesmo assim, sempre abria a porta. Até ela esbravejar:
- Pôxa, mamãe, assim você acaba com o meu laboratório!!!
Disse-lhe que não tinha entendido...
- O meu laboratório de sonhos, oras!!! Meu quarto é o meu laboratório de sonhos!!!
Depois disso, passei a respeitar a privacidade de minha pequena cientista e artista-mirim. Para que ela fizesse muitas experiências em seus invisíveis tubos de ensaios, misturando lindos sonhos para ver em que iria dar a realidade...

*** Para sempre criança ***

Assim como a irmã – e suponho a maioria das crianças -, meu filho teve, aos 8 anos, sua fase de temor em virar adulto. Com nostalgia antecipada, choramingava que queria brincar e ser pequeno para sempre, tal qual Peter Pan e os meninos da Terra do Nunca. Pragmático, constatou e decidiu um dia:
- É muito ruim ser adulto! Tem que trabalhar, pagar contas, ir ao supermercado, cuidar das crianças, resolver as coisas da casa... Eu não quero casar! Quero morar com vocês para sempre...
Já aos nove anos e pelo menos dez centímetros maior, quando deitava em sua cama à noite, me perguntou como e quando as crianças cresciam, já que ele não conseguia perceber. Simplesmente notava que suas pernas e braços se alongaram e que seu corpo já era quase do tamanho da sua cama.
Expliquei-lhe que isso acontecia de forma imperceptível, todos os dias, mas que os médicos dizem que o nosso crescimento – tanto dos ossos como dos músculos – é maior durante o sono, porque fazemos repouso absoluto.
- Mamãe, eu tenho medo de um dia dormir e acordar adulto!
Tranquilizei Gabriel que isso não aconteceria de um dia para o outro, mas sim aos pouquinhos e que ele teria muitos anos para aproveitar como criança. Fiquei ali, deitada a seu lado, sentindo sua inquietude adormecer e agradecendo pelo tanto que ainda assistiria a sua infância despertar. 
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Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Somos personagens de nossos destinos

     


    Vejo a vida como um misterioso roteiro que um autor constrói de acordo com seus personagens. Dependendo dos rumos de suas histórias, os papéis seguem ou não o script inicial. A morte do ator Domingos Montagner, tragado por um redemoinho no Rio São Francisco ao filmar uma cena de novela, me fez pensar no quanto a vida tem de imprevisível. Acredito que possuímos mais do que um destino e que somos personagens de uma trama maior, já quase toda pronta, mas com capítulos e desfechos em aberto.

     Todos os dias pessoas não mais acordam ou viram a esquina sem saber que não voltarão a suas casas e famílias, suas anônimas histórias. Um mergulho, um terremoto, um assalto... Tudo pode acabar em segundos, a realidade parecer ficção e a morte, abrupta, se assemelhar a carma. Nessas horas, não há tempo para despedidas e declarações, mas certamente sobra para saudade e arrependimentos. O que não foi feito e dito e poderia ter sido. O que foi dito e feito, mas não deveria. 

     As fatalidades mostram como a vida é fugaz e não podemos perder tempo com besteiras. Viver é um risco que temos que saber correr, entre o imponderável do acaso ou do destino e o que aprendemos com as consequências de nossas decisões e fatos alheios que nos afetam.  Creio que os principais acontecimentos de nossas vidas ocorrem porque são necessários, assim como encontramos pessoas que de alguma forma precisamos. Creio que viver é parte de um processo de evolução espiritual.

     Algumas vezes parecemos estar na hora e no lugar certos ou na hora e no lugar errados. Mas se retrocedermos nossos passos no relógio, vemos como de forma surpreendente os apressamos numa direção ou os atrasamos até prosseguir noutra. Assim acontece com aquele passageiro que desiste de um voo no avião que caí. Ou com um casal se conhecendo quando tudo os levaria a desencontros. É como algo nos impulsionasse para destinos diferentes daqueles que pareciam nos esperar.

     Costumo pensar que nossos poucos (talvez dois ou três) destinos são bifurcações de estradas, que escolhemos seguir. Com mais ou menos curvas e atalhos. Tempestades alagam a pista para nos fazer derrapar e nos atemorizar.  Uma pane elétrica nos detêm no acostamento atrasando a viagem. Tudo afetará a maneira como iremos rumo a nossos destinos. A maior parte deles, para o bem ou o mal, está traçada, mas alguns podem ser alterados por nosso livre arbítrio.

     Toda a sorte (ou azar) de problemas acontece no percurso.  É raro nos mantermos seguros, sabendo de cor o mapa de nossos desejos e metas. Perdidos, podemos usar o GPS de experiências e intuições ou sair a esmo, por pura adrenalina. Podemos até retroceder para retomar um rumo que ficou para trás. O destino surgirá em um trecho da estrada, como uma das opções em aberto do nosso roteiro ou a do script original. Ainda que pareça sem sentido, estará cheio de significados.

 


Texto: Nadja Bereicoa
Imagem: Pixabay