Cai o pano. Não poderia ter tido melhor título o derradeiro
episódio da série Pé na cova, que há dias exibiu as últimas imagens da falecida Marília Pera, uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos. Vê-la brilhando na TV, inteira e intensa, me fez refletir sobre a
força sobrenatural que algumas pessoas possuem para superar a dor que
dilacera o corpo e a alma, em prol de um propósito. Sofrendo
de um câncer devastador e terminal, essa magistral atriz e mulher – ainda maior por isso
– não se entregou até o fim. Gravou todas as suas participações no programa e partiu logo após cumprida essa missão.
A morte da atriz surpreendeu a todos. Doente há três
anos, ela escondeu seu problema do público e até dos colegas de elenco,
despistando notícias vazadas à Imprensa. Unicamente com a família, dividiu o seu
fim. Em uma entrevista, Miguel Falabella, autor e protagonista, declarou ter
vivido momentos lindos mas tristes contracenando com ela, em um
adeus não pronunciado. Em respeito à companheira de cena, nunca abordou a doença.
“Ela sabia que eu sabia e a gente mentia um para o outro”, disse. Com um pacto tácito de silêncio na vida real,
eles protagonizaram na tela diálogos sensíveis sobre a finitude, como Darlene e
Ruço, a maquiadora de cadáveres e o dono da funerária, um ex-casal que sempre
se amou.
Somente neste ano, para me despedir da atriz, passei a
acompanhar a controvertida série, que tratava a morte de forma desmistificada, com um humor ora bizarro ora nonsense que desconstruía tudo e todos
que giravam em torno da agência funerária, polo central da trama passada no
subúrbio carioca do Irajá. Personagens esdrúxulos quebravam os critérios da sanidade e flutuavam entre a morbidez e a vida, a dureza e a poesia, o surrealismo e a realidade. Talvez pelo desconforto de estar vivenciando mortes doídas, não me interessei antes pelo
caos que misturava com caricatura e ingenuidade, em meio a caixões, defuntos, esquizofrênicos, impostores, alcoólatras,
gays, prostitutas...
Em tempo me abri para a inovadora narrativa de Falabella. Vi que seus personagens inverossímeis e, simultaneamente, possíveis
falavam de forma anárquica, quase subconsciente, sem ligar para tabus, o que
muitos não têm coragem de assumir a vida inteira. Confessavam suas opções de
vida, suas fraquezas, seus fracassos, até seus desvios de caráter, e assim
eram felizes. Como todos podem ser, cada qual a seu modo, seja como for - se
preciso rompendo padrões, mas sendo autênticos e perseguindo sonhos mesmo que
irreais. Ainda que a morte esteja à espreita, iminente, certa, por vezes debochada.
Por uma infeliz ironia, Marília Pera acabou se transformando
numa personagem extra de Pé na Cova. Detrás da cena, ela nos ensinou como
encarar de frente a morte, sem desistir de cumprir uma missão em vida para
seguir a sua nova jornada. Omitiu suas dores e sua tristeza porque sabia que
precisava terminar um ciclo, seu último ato, e deixar serena e lentamente cair o pano da
vida. Miguel Falabella, a quem passei a
admirar especialmente como dramaturgo, rendeu-lhe uma merecida homenagem nesses
meses, com cenas bonitas, engraçadas ou melancólicas, que misturavam o passado
ao presente e mostravam que, lá no fundo, continuamos os mesmos.
“O segredo da vida é a gente fingir que não está com medo, é
a gente fingir que não está sofrendo”. O Ruço de Miguel disse essa frase à Darlene
de Marília, parecendo que a esta se dirigia. Como em várias outras filosofias de
botequim da série, ecoou ali uma grande verdade: não devemos alardear as nossas fragilidades, o quanto estamos assustados ou dilacerados,
em busca de ajuda ou comiseração. Esse fingimento do bem - que não machuca a ninguém, sem trapaças
– pode ser necessário para nos proteger, nos fortalecer e nos
permitir seguir. Foi o que fez Marília atuar até o final, dignamente e em meio a aplausos.
Devemos entender e aceitar quando as cortinas estão a se
fechar, pela
proximidade das várias cruciais mortes que nos cercam, reais ou simbólicas. Nesses momentos, o que mais precisamos é de fé e sabedoria para decidirmos entre ficar, nos prolongar mais um pouco ou partir. Poderemos então nos despedir sem sucumbir. E acreditar que outras cortinas
se abrirão.
Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay