sábado, 23 de abril de 2016

Semente de inspiração




   Escrever é no chão seco ver semente,
brotando sob a forma de inspiração.
É como uma outra vital respiração, 
sem a qual mal se consegue viver.

Escrever é tratar as antigas escaras,
 soltar o que ficou preso sem querer.
É, com calma e precisão, fazer aparas,
para ir ao cerne do que se quis dizer.

Escrever é dissipar sombras da alma,
com palavras que jorram sem parar.
É sentir doer fundo, mas se acariciar,
criar coragem e deixar tudo cicatrizar.

Escrever é deter o tempo que não existe
 em uma emoção, em um momento. 
É entender o que terminou mas insiste.
É buscar, descobrir, continuar sem saber.

Escrever é pra quem não quer se esquecer.



Poema: Nadja Bereicoa
Foto: Júlia Bereicoa



segunda-feira, 11 de abril de 2016

Entre o fechar e abrir das cortinas

     
Cai o pano. Não poderia ter tido melhor título o derradeiro episódio da série Pé na cova, que há dias exibiu as últimas imagens da falecida Marília Pera, uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos. Vê-la brilhando na TV, inteira e intensa, me fez refletir sobre a força sobrenatural que algumas pessoas possuem para superar a dor que dilacera o corpo e a alma, em prol de um propósito. Sofrendo de um câncer devastador e terminal, essa magistral atriz e mulher – ainda maior por isso – não se entregou até o fim. Gravou todas as suas participações no programa e partiu logo após cumprida essa missão.
     A morte da atriz surpreendeu a todos. Doente há três anos, ela escondeu seu problema do público e até dos colegas de elenco, despistando notícias vazadas à Imprensa. Unicamente com a família, dividiu o seu fim. Em uma entrevista, Miguel Falabella, autor e protagonista, declarou ter vivido momentos lindos mas tristes contracenando com ela, em um adeus não pronunciado. Em respeito à companheira de cena, nunca abordou a doença. “Ela sabia que eu sabia e a gente mentia um para o outro”, disse.  Com um pacto tácito de silêncio na vida real, eles protagonizaram na tela diálogos sensíveis sobre a finitude, como Darlene e Ruço, a maquiadora de cadáveres e o dono da funerária, um ex-casal que sempre se amou.
     Somente neste ano, para me despedir da atriz, passei a acompanhar a controvertida série, que tratava a morte de forma desmistificada, com um humor ora bizarro ora nonsense que desconstruía tudo e todos que giravam em torno da agência funerária, polo central da trama passada no subúrbio carioca do Irajá. Personagens esdrúxulos quebravam os critérios da sanidade e flutuavam entre a morbidez e a vida,  a dureza e a poesia, o surrealismo e a realidade. Talvez pelo desconforto de estar vivenciando mortes doídas, não me interessei antes pelo caos que misturava com caricatura e ingenuidade, em meio a caixões, defuntos, esquizofrênicos, impostores, alcoólatras, gays, prostitutas...
     Em tempo me abri para a inovadora narrativa de Falabella. Vi que seus personagens inverossímeis e, simultaneamente, possíveis falavam de forma anárquica, quase subconsciente, sem ligar para tabus, o que muitos não têm coragem de assumir a vida inteira. Confessavam suas opções de vida, suas fraquezas, seus fracassos, até seus desvios de caráter, e assim eram felizes. Como todos podem ser, cada qual a seu modo, seja como for - se preciso rompendo padrões, mas sendo autênticos e perseguindo sonhos mesmo que irreais. Ainda que a morte esteja à espreita, iminente, certa, por vezes debochada.
     Por uma infeliz ironia, Marília Pera acabou se transformando numa personagem extra de Pé na Cova. Detrás da cena, ela nos ensinou como encarar de frente a morte, sem desistir de cumprir uma missão em vida para seguir a sua nova jornada. Omitiu suas dores e sua tristeza porque sabia que precisava terminar um ciclo, seu último ato, e deixar serena e lentamente cair o pano da vida.  Miguel Falabella, a quem passei a admirar especialmente como dramaturgo, rendeu-lhe uma merecida homenagem nesses meses, com cenas bonitas, engraçadas ou melancólicas, que misturavam o passado ao presente e mostravam que, lá no fundo, continuamos os mesmos.
     “O segredo da vida é a gente fingir que não está com medo, é a gente fingir que não está sofrendo”. O Ruço de Miguel disse essa frase à Darlene de Marília, parecendo que a esta se dirigia. Como em várias outras filosofias de botequim da série, ecoou ali uma grande verdade: não devemos alardear as nossas fragilidades, o quanto estamos assustados ou dilacerados, em busca de ajuda ou comiseração. Esse fingimento do bem - que não machuca a ninguém, sem trapaças – pode ser necessário para nos proteger, nos fortalecer e nos permitir seguir. Foi o que fez Marília atuar até o final, dignamente e em meio a aplausos.
     Devemos entender e aceitar quando as cortinas estão a se fechar, pela proximidade das várias cruciais mortes que nos cercam, reais ou simbólicas. Nesses momentos, o que mais precisamos é de fé e sabedoria para decidirmos entre ficar, nos prolongar mais um pouco ou partir. Poderemos então nos despedir sem sucumbir. E acreditar que outras cortinas se abrirão. 
  

Texto: Nadja Bereicoa
Fotos: Pixabay